HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 6
SAUDOSA ASSUNÇÃO
Pode uma vaquinha que devora plantas em praça pública servir de referência positiva para algum logradouro? Eu diria com toda certeza que sim. Não havia assistido a algo assim nem nos velhos tempos da cidade de Pirapetinga, MG, onde nasceu minha mãe. Por ali transitavam carros de boi, carroças puxadas a cavalo, mas vaca bagunçando o coreto da pracinha local, nunca!
A insólita cena foi presenciada por mim em Assunção, ao conhecer a capital paraguaia durante missão oficial em 1975. Eu caminhava pela avenida que margeia a região portuária da cidade e diverti-me ao ver o jardineiro correr para espantar o animal dali. A vaquinha contribuiu, junto com as lindas guarânias e diversas outras boas recordações do meu primeiro contato com Assunção, para incutir-me o pronto desejo de um dia vir a obter transferência para o amável país vizinho.
Custou-me bom tempo para concretizar esse desejo, pois somente em 2011 fui lá servir como cônsul-geral por mais de cinco anos dos mais felizes de minha carreira diplomática. A experiência consular foi tão gratificante quanto as que tive em Montréal e Vancouver, permitindo-me não só interagir com a comunidade brasileira local, paraguaios e outros latino-americanos, mas forjar novos laços de amizade duradoura. Uma vez mais, contei com prestimosa equipe de colaboradores, encabeçada por uma grande figura humana, o experiente conselheiro Carlos Alberto Ribeiro Reis, e pela jovem e eficiente secretária Veridiana Lhamas Fernandes, substituída três anos depois pelo competente conselheiro Alexandre Barbedo, caro amigo que já havia trabalhado comigo em Brasília.
Além do trabalho usual cotidiano, conseguimos promover atividades culturais de positiva repercussão. Durante cinco anos, organizamos a Feira Cultural Paraguai-Brasil, com o apoio do Itamaraty, da Prefeitura assuncenha, de firmas locais e de cidadãos brasileiros. Um dia inteiro de apresentações musicais, barracas de arte, artesanato e culinária dos dois países, as quais congregavam e aproximavam seus nacionais, além de gente de outras origens. Paraguaios que tocavam bossa nova, brasileiros especializados em chipas, beijus e outras delícias guaranis, nossa feirinha representou carinhosa mostra de integração e convivência. Dava gosto ouvir alguns perguntarem se o evento não podia ocorrer mais de uma vez por ano ou cobrir dois dias.
Se o que é bom dura pouco, como parecia o caso da Feira, também fico com a impressão de que meu quinquênio paraguaio poderia haver-se estendido bem mais…
AS LONGAS NOITADAS
A grosso modo, o trabalho diplomático desenvolve-se nas vertentes bilateral e multilateral. A primeira diz respeito às relações brasileiras com cada país enquanto a segunda envolve vários países ao mesmo tempo dentro de um organismo internacional ou regional. Ambas as modalidades exigem elevada dose de dedicação profissional.
Embora negociações bilaterais também possam entrar noite adentro, foi nas organizações multilaterais que mais tive ocasião de participar de longas reuniões noturnas que invadiam a madrugada e pareciam infindáveis. Tal situação decorre naturalmente da multiplicidade e da diversidade dos interesses em jogo, o que torna muitas vezes extremamente difícil alcançar uma decisão unânime ou mesmo majoritária sobre o tema em discussão.
De todas as longas noitadas vividas, minha inesquecível certamente consistiu na de uma Assembleia-Geral Ordinária (AGO) na sede da Organização dos Estados Americanos, em Washington, DC, no final da década dos 70.
Como de hábito, a agenda do encontro foi distribuída a cinco comissões temáticas (assuntos políticos, econômico-comerciais etc.). Em nenhuma delas faltavam temas sobre os quais se sabia de antemão haver posições díspares e dificilmente conciliáveis entre determinados países. O resultado não poderia ser outro: a sessão plenária em que se deveriam aprovar os relatórios e as resoluções de cada comissão, no último dia da AGO, somente se iniciou tarde da noite e entrou madrugada adentro. As expressões extenuadas de embaixadores e outros membros das delegações eram impressionantes!
Por sorte, minha comissão foi das primeiras a apresentar seu relatório por volta das três da manhã. Mesmo assim, como era de praxe, representantes inconformados com as decisões naquela instância tentaram reabrir os debates no plenário. Quando finalmente todos os documentos foram aprovados, pude então deixar o local da reunião e ir ao escritório da Missão brasileira para redigir o telegrama que relataria os trabalhos ao nosso Ministério, em Brasília. Deixei esse relatório na mesa do ministro-conselheiro que faria sua revisão e ainda se encontrava na sede da OEA à espera dos resultados de sua própria comissão. Como já tinha sido liberado para tanto, deixei o escritório às seis da manhã e fui para casa, dormir um pouco. Ao despertar, telefonei para a Missão e soube que a assembleia ainda estava por encerrar-se, o que ocorreu pouco depois da hora do almoço.
Os trabalhos prolongados fizeram com que a reunião invadisse o feriado de Ação de Graças (Thanksgiving), uma das datas mais caras aos norte-americanos. Além do cansaço, compartido pelas demais delegações, era nítido o azedume de nossos colegas pelo sacrilégio de que foram vítimas. Não dá para esquecer...
IGUARIAS AUTÊNTICAS
Um dos estereótipos que cercam a profissão de diplomata refere-se aos suntuosos banquetes e às finas iguarias a que estariam acostumados. Sem dúvida, todos nós temos oportunidades de degustação desse gênero. Por outro lado, convém não esquecer que nem todo banquete seria delicioso. Imaginem o caso de colegas meus que tiveram de engolir peixinhos vivos ou “saborear” outras extravagâncias por dever de ofício. Eu não queria estar na pele deles.
Talvez porque minha experiência no exterior se restringiu ao circuito Américas-Europa-África, corri menos o risco de ver-me às voltas com pratos demasiado exóticos. O mais extraordinário de que posso lembrar-me foi o de haver experimentado, por iniciativa minha, uma sopa de serpente vietnamita, pedida por outra pessoa conhecida. Não achei má, diga-se de passagem.
Nesse monumento à gastronomia que é a aprazível capital da Bélgica, também pude experimentar pratos de carne de caça até então desconhecidos. No Brasil, já havia provado e apreciado capivara, paca, jacaré e outras espécies. Em Bruxelas, quando se ofereceu a ocasião, familiarizei-me com mais iguarias do gênero. Uma delas, o faisão, notabilizou-se por sua autenticidade. Ao comê-lo, senti algo duro como uma semente, que por sorte não mordi com força. Ao ver o que era, surpreendi-me com um chumbinho proveniente de cartucho de espingarda. Não me restou dúvida: desfrutei do privilégio de comer carne de caça autêntica!
Brasília, maio 2024.