Natal com os Chucrutes

Sabe quando você está vivendo um momento bacana na sua vida, e você se pega questionando se aquilo é real mesmo? É como se você saísse do próprio corpo e tivesse uma consciência à parte. Por que eu mereço isso? Pode esperar, porque eu sei que vou acordar desse sonho. É tão curioso quando isso acontece, porque sinto que parei o tempo e admirei o milagre da vida e das amizades que podemos construir. Mas é tudo tão diferente do que eu já vivi, ou como as pessoas da minha própria família me tratavam, que demora pra cair a ficha e aceitar que é de verdade.

Esse ano, a Dorothea, mais conhecida como Doro, nos convidou para passar o Natal com ela e sua família. A gente se conheceu no International Café da Universidade de Bremen, que acontece todas as quartas-feiras, às 16 horas. No primeiro dia que eu fui lá, eu estava com tanta vergonha de me aproximar, que fiquei sentada sozinha em um sofá mais afastado, esperando que a Paula chegasse. Paula é chilena e ela tinha me convidado para ir a esse encontro. Eu estava pronta pra desistir e ir embora, mas aí a Paula chegou e me viu. Só então que eu tive coragem de me aproximar das pessoas que estavam comendo biscoitos e bebendo chá. Eu levei comigo uma cartinha onde escrevi em alemão com a ajuda da internet "Olá, meu nome é Isis, sou brasileira, e gostaria muito de aprender alemão. Se você tiver interesse em falar português, entre em contato. Poderíamos fazer encontros semanais". Foi aí que eu conheci a Doro. Ela tinha vontade de um dia ir a Portugal, e a filha dela, Emma, já tinha visitado o Brasil. Já nos encontramos várias vezes, mas até hoje, ela sempre diz que está cansada pra aprender português e sem paciência para falar em alemão comigo, então, conversamos principalmente em inglês.

Quando ela me enviou mensagem convidando para celebrar o Natal, dia 24 de dezembro, até meia noite, com ela, eu me senti tão honrada pela consideração, que aceitei o convite de primeira. O jeito que eles comemoram é bem diferente do nosso. Sabe o que fizemos? Primeiro, tem que decorar a casa toda. Eles têm árvores de Natal reais, não são de plástico como as que a gente vê no Brasil. Nós sentamos no chão perto da árvore e abrimos todos os chocolates e biscoitos para distribuir de um jeito colorido e bonito em um prato bem grande, que eles chamam de "Bunter Teller" (prato colorido) ou "Süßer Teller" (prato doce). Depois disso, nós fomos jantar todos juntos com velas sobre a mesa, além de pratos e talheres muito bonitos utilizados em ocasiões especiais como essa. Para o jantar, comemos ganso assado, "Rotkohl" (repolho roxo azedo), e uns bolinhos macios feitos só de batata, chamados de "Kartoffelklöße". Uma coisa que eu prestei atenção é que diferente dos brasileiros, que quando têm condição de preparar a ceia de Natal, fazem na fartura, sobrando comida para a semana inteira, aqui eu percebi que a comida era servida o suficiente para cada pessoa. O que eu achei bom nisso é que todo mundo ficou bem cheio, e ainda ninguém desperdiçou nada.

Depois de jantar, fomos nos sentar ao redor da árvore. A Córdula, amiga da Doro, pegou o violão para tocar, e cada um recebeu um livreto com as canções natalinas mais famosas na Alemanha. A mãe da Doro, dona Elizabeth, disse que cantou por 40 anos no coral da igreja, então, quando começamos a cantar, pode imaginar que realmente foi lindo de ouvir e vivenciar. Eles ainda me deixaram escolher duas músicas do livreto: "O Tannenbaum" e "Stille Nacht, heilige Nacht". Essa última é a versão alemã do nosso "Noite Feliz", que eu obviamente cantei pra eles conhecerem (gosto mais da nossa). Aí pra completar, a dona Elizabeth, de 82 anos, havia escrito uma poesia sobre o Papai Noel, e leu para todos nós. Era sobre como ele estava infringindo as leis por invadir as casas das pessoas pela chaminé sem nenhuma autorização, e que ele nem tinha um visto para entrar na Alemanha depois de sair do Polo Norte. Dizia que ele poderia ir parar na cadeia, a menos que desse presentes em troca. Foi muito engraçado e de um talento incrível. Aquele texto deveria ser publicado, mas talvez mais ninguém além de nós o conheça, tornando isso tudo ainda mais especial para mim.

Nós abrimos juntos os presentes que estavam embaixo da árvore. Sabe o que mais me tocou? Todos os presentes tinham afeto neles. Não eram objetos caros que as pessoas compram para mostrar o quanto podem gastar com você. O valor financeiro era desimportante. Fotografias, presentes feitos à mão, cartas... É como valorizar o que realmente faz sentido na vida, sem querer nada em troca. Isso me tocou muito. E quando deu meia-noite, cantamos parabéns para Córdula, porque ela nasceu no dia 25. Aí depois a Doro foi nos deixar em casa. Nossa, foi um dia memorável e que eu vou sempre lembrar com muito carinho. Nunca fui tratada bem assim nem pela minha própria família. Bate aquele sentimento de que a gente merece ser respeitado e amado, só não tinham nos ensinado ou demonstrado. Às vezes, é preciso atravessar o oceano para que se sinta em casa. Foram abraços fortes e verdadeiros. Senti que me queriam por perto por inteiro. Me senti viva e sem precisar fingir ser quem não sou. Eu amei poder estar viva para vivenciar todos esses momentos únicos. Feliz vida para todos!

Isis do Vale
Enviado por Isis do Vale em 26/12/2024
Reeditado em 26/12/2024
Código do texto: T8227422
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