HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 5

MONTRÉAL, JE ME SOUVIENS

Embora o mote “eu me recordo” se revista de significado histórico negativo para bom número de quebequenses, adapta-se perfeitamente à carinhosa lembrança que sempre guardarei de Montréal. Quando fui designado como Cônsul-Geral na cidade, em 1999, logo me vieram à mente reminiscências dos tempos escolares. A família do Monsieur Vincent, que havia sido ali designado correspondente, conforme o livro de G. Mauger, utilizado tanto nas aulas de francês do Colégio de São Bento quanto nas da Aliança Francesa nos saudosos anos 60. O trabalho do curso de Geografia, em 1966, sobre a América do Norte, em relação ao qual fui dos poucos alunos a escolherem o Canadá como tema.

Havia, pois, uma ligação sentimental pregressa com a cidade e o país, a qual somente veio a reforçar-se durante a missão consular (e a que se seguiria, anos depois, em Vancouver). Antes mesmo da remoção, minha esposa e eu viajamos para Montréal, a fim de permitir-me contato prévio com o posto e as atribuições que me caberiam. Meu antecessor, o bom colega e amigo Antonino Marques Porto, traçou-me o mapa da mina com perfeição.

Ao sair do hotel para a primeira caminhada pelo centro, já nos enamoramos da cidade. Diferentemente de outras áreas urbanas centrais, transbordantes de concreto e de burocracia, o local apresentava leveza e harmonia entre gente, casas e edifícios, além de ruas estimulantes para percorrer. Cinemas, livrarias, lojas de discos (CD e DVD), restaurantes, lanchonetes, tudo parecia convidar-nos à exploração, presente e futura.

O mergulho na cidade subterrânea revelou-se igualmente aprazível. Viria a ser percorrida numerosas vezes ao longo dos quase cinco anos completos que lá vivemos. Mal se acreditava estar debaixo da terra ante tanta luz e tamanho movimento.

Ademais das grandes amizades que ali construímos, Montréal brindou-nos com uma rica vida cultural. Festivais de cinema, música e outras artes praticamente todo o ano. No curto verão, que mal chegava a três meses, brotavam patinadores, ciclistas e mundos de gente a usufruir do momentâneo calor e a dar novo colorido ao cenário urbano. Nossa linda experiência pessoal só veio a repetir-se em boa medida em Assunção e em Vancouver anos depois.

O COFRE QUE NÃO ERA PORQUINHO, MAS FEZ PORCARIA

Na Embaixada em Luanda, havia dois cofres desses tradicionais, pesadíssimos, de cerca de 1,60 de altura. Um era de uso da Contabilidade, outro pertencia ao setor de Comunicações. Ambos, quando abertos, mantinham a chave presa na porta para evitar-se o risco de serem trancados com ela dentro.

Pois não é que um funcionário administrativo conseguiu a “proeza” de retirar a chave da fechadura e trancá-la no interior do cofre, ao substituir o teletipista por breve, mas fatídica hora? Menos mal que a tabela de códigos para decifrar os telegramas sigilosos vindos do Itamaraty ficou de fora, o que evitou deixar-nos impossibilitados de ler tais expedientes.

No dia seguinte, ao chegar à Embaixada, deparei-me com a cena dantesca de uns oito indivíduos a pelejar para retirar o pesado cofre da sala e baixá-lo três andares até o nível da rua unicamente com a força das mãos, dos gritos e impropérios. As paredes da escadaria foram aquinhoadas com fartos sinais da passagem do cofre e nem sei como o corrimão de madeira sobreviveu com menos avarias.

No segundo andar da Chancelaria, o valoroso time de profissionais abalroou tão fortemente uma parede que provocou estragos do lado vizinho da Residência (as duas casas eram geminadas), afetando reboco, pintura e objetos decorativos ali existentes. Para piorar o drama, a Residência havia sido objeto de recentes trabalhos de reforma, que precisou ser refeita no cômodo afetado. Claro que isso somente foi providenciado semanas após o retorno do cofre-forte em novas cenas cinematográficas de catástrofe.

NEVE AGAIN - episódio III e final

Certamente os que tiveram de remover a neve de entradas de casas e calçadas sabem como é dura a tarefa. Em uma das residências em que morei, em Washington, DC, por ser a única daquele lado do quarteirão, eu tinha de limpar longo meio-fio, de uma esquina à outra. Retirava a neve assim que regressava do trabalho e, algumas vezes à noite, na hora de dormir, via que mais flocos começavam a tombar, obrigando-me a levantar bem cedo na manhã seguinte para recomeçar o serviço. Que prazer!

Não obstante, nenhuma das cidades onde estive mostrou-se tão “generosa” em matéria de neve quanto Montréal. Nevava constante e fartamente! Não raro, por mais de seis meses. A massa branca jamais parecia dissolver-se e, a cada limpeza, cresciam as montanhas acumuladas nos jardins ou outros pontos que não comprometessem a passagem dos transeuntes.

Quando amanhecia nevando e eu retirava a neve do carro que pernoitava fora da garagem para ir trabalhar, sentia-me como personagem de cena ininterrupta de desenho animado, pois, ao limpar a última janela, já tinha de repetir a operação na primeira. A diferença é que a gente costuma rir no caso dos desenhos animados. Ao vivo, perde a graça.

Entre tantas experiências do gênero, a nevada inesquecível terá sido a que, em abril de 2001, brindou a apresentação do compositor Marcos Valle na cidade. Cabe explicar que nesse mês usualmente neva de forma menos intensa, já nem se fazendo necessário o trabalho de limpeza pública das ruas, executado com grande eficiência pela Prefeitura local. Só que na referida data ocorreu o inusitado.

A vinda do artista brasileiro ainda fazia parte das atividades comemorativas dos 500 Anos do Brasil, organizadas desde o ano anterior pela promotora cultural Júlia Souhami (quem, juntamente com o marido, o renomado oncologista Luís Souhami, foi uma das grandes amizades que minha esposa e eu forjamos em Montréal). A cantora do grupo que acompanhava Marcos Valle disse à Júlia que adoraria ver neve e nossa amiga “atendeu”, mesmo sem imaginar que o faria. No dia da apresentação, desabou uma nevasca que apanhou a todos de surpresa, inclusive a Prefeitura, que havia desmobilizado o serviço de limpeza das ruas.

Apesar de todo o transtorno inesperado e da dificuldade prática de chegar à sala de espetáculos, o show contou com expressiva audiência e a honrosa presença do prefeito Pierre Bourque, a quem eu convidara e ofereci coquetel.

Brasília, abril/novembro 2024.