Maria Carlinda

Era o seu nome, mas ninguém a chamava assim a não ser nos consultórios médicos ou em ocasiões formais. Para quem a conhecia e a conheceu, era simplesmente Cordeira, dona Cordeira, tia Cordeira ou vovó Cordeira... um apelido que ganhou desde criança em virtude de seu temperamento calmo.

Minha mãe e de mais 10 outros filhos, um que veio antes de mim e outros 8 que chegaram depois, conheceu meu pai nos arredores onde nasceram. Eram primos afastados, mas nem tanto, pois acabaram se enamorando e casando. Não demoraram muito para terem os filhos que Deus quis... E como Deus quis!

Minha mãe era uma santa, melhor, é uma santa, não está nos altares das igrejas, porque o Vaticano jamais aceitaria os inúmeros milagres que fazia, ora na cozinha, ora na máquina de costura.

Entre os seus milagres os mais impressionantes foram os que fazia para disciplinar a prole, quando usava de alguns instrumentos que não seriam aceitos como prova. As suas sandálias ou algum cinto que estivesse disponível. Na sua velhice dizia que nunca houvera batido em nenhum dos seus filhos, que nos educou somente na conversa, mas eu mesmo conversei muitas vezes com as suas chinelas e tive longos e ardentes diálogos com algum outro desses apetrechos de comunicação.

Ela sempre dizia que amava todos os filhos igualmente e isso é verdade, pois ninguém nunca percebeu a sua predileção pelo caçula. Ele se vangloriava, porque sempre foi muito convencido.

Seu ponto forte era a cozinha, não pelos milagres que fazia para multiplicar pães, peixes, feijão, arroz, etc. para alimentar todos aqueles famintos magricelas, mas os seus dotes culinários eram conhecidos e reconhecidos. Todos adoravam sua comida. Primeiro papai, depois os filhos e por fim os netos que ela enganou por muitos anos com um famoso pirão dos almoços de domingo em sua casa.

Ela sabia do que cada um gostava. Uns disso, outros daquilo, outros de nada. Só se deu mal comigo, concluiu que eu gostava de asa de galinha. Eu explico: nos tempos de universidade eu chegava depois que todos já haviam almoçado e, depois de revisar e revirar panelas, a parte mais apetitosa que sobrava era justamente ela, a asa de galinha. Suportei calado por muitos anos essa preferência, que não era minha. Até que um belo dia à mesa o assunto veio à mesa. Alguém disse que mamãe sempre guardou as asas de galinha para mim. Então eu expliquei a minha versão, que nunca tive preferência pelo corte e era só uma questão de escolha. Como me arrependo disso! Mas continuei comendo as asas de galinha.

Quando me formei, fui o primeiro filho a ser graduado, depois, todos também concluíram seus cursos. Estava às voltas com um problema para resolver: quem seria minha madrinha de formatura? não me passou pela cabeça que a pessoa mais indicada seria minha mãe, ou o meu pai. Mas não cogitei, ao ponto de meu irmão mais velho propor sua futura cunhada, irmã de sua namorada. Não a conhecia muito, não éramos sequer amigos. Aceitei a proposta e minha mãe acabou sendo só a mãe do formando. Não digo que me arrependo. Não perdi a mãe e ganhei uma esposa. Somos casados há mais de 40 anos. Mas essa decisão ainda mexe comigo. Por que não foi mamãe?

Enfim nos casamos. No nosso casamento mamãe não estava muito feliz. As fotos não escondem uma sisudez em seu semblante. Nunca questionei o motivo, mas a minha agora esposa, após a recepção, já casa dos meus pais, que estava incomodada com sua aparente tristeza, falou para ela que iria fazer o filho dela feliz. Meu pai que ouvira tudo, por muitos anos, à sua maneira, dizia que ela tinha jurado, de joelhos, aos pés do fogão.

Quando um dos meus irmãos foi vítima de latrocínio. Ele se encontrava na UTI em situação bastante grave e fui encarregado de dar a notícia para ela. Só um milagre tiraria ele daquela situação. Achei perverso criar alguma esperança para ela e fui direto, lhe disse a verdade e assisti uma cena que não desgruda dos meus olhos. Ela, surpresa e sentida, reagiu com um breve choro, depois passou as mãos no rosto e o estancou. Depois disso não vi minha mãe chorar nenhuma vez, durante os dias que ele ficou na UTI, nem no velório, sepultamento ou missa de sétimo dia. Poucas horas depois ela diria que não sabia quem estaria sofrendo mais, se ela, que perdeu o filho ou a mãe daquele que o matou. Nunca vi tamanha fé.

Mas minha mãe é uma santa, por isso eu termino esta singela homenagem com a trova abaixo, de autoria do poeta pernambucano Barreto Coutinho.

Eu vi minha mãe rezando

aos pés da Virgem Maria.

Era uma santa escutando

o que outra santa dizia.

Recife, 27 de outubro de 2024,

Em homenagem à minha mãe, que nos deixou há longos três anos e foi morar no céu, onde, junto com Nossa Senhora, cuida de nós.

Luís Xavier
Enviado por Luís Xavier em 27/10/2024
Reeditado em 27/10/2024
Código do texto: T8183039
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