A caminho de Paris
Mais uma paragem. Gente e mais gente que carregando sacolas e malas, se apinham na entrada do trem. A viagem seria… a salvação,. Dava para imaginar com alegria, não íam para perto, os próximos anos seriam passados bem longe de tudo o que lhes era querido. E todos procuravam o mesmo, - saída para suas intrincadas vidas -.
E, lá seguia de novo o trem.
Alegres, empoleirados, cabeça fora das janelas para apanhar o ar, lá iam eles se entretendo a apreciar o movimento das gares, o corre-corre das pessoas, os apitos do trem e dos comandantes do tráfego, gritos, e chiadeira, que lembrava aquele inesquecível filme, Expresso do Oriente...
Arrastando suas malas, com dois sacos dependurados no braço, avançava e conferia seu número no bilhete. Os dois a observavam. Ia andando e eles logo disseram, olha essa vem para cá!– É mesmo, Filipe! Vamos ter companhia! Ela acabava de reconhecer o número da couchete. – É este aqui, mesmo, tentando abrir a porta, mas com tanta coisa nas mãos e nos braços, foi Filipe quem lhe ajudou. – Vocês também são daqui? Perguntou, sorridente? – Somos! Respondeu ele. – Pois têm mais uma companheira, disse, toda animada. Era uma senhora já de meia idade, e parecia não ser estranha por aqueles lados, estava com muita à vontade, era de quem conhecia já o trem, o trajeto e a atmosfera. Penetrando na couchete onde a um canto se encontrava, dormindo, Isaura e no outro Agripino... Filipe deu-lhe uma ajuda para empoleirar as malas lá em cima, ela lhe agradeceu e Isaura acordava estremunhada. – Boa tarde companheira! Disse. – Boa tarde! Qual é seu nome? – Eu me chamo Elisa! – E para onde vai? --- Eu vou para França. --- Eu também vou! – Vou para Austerlich, mas depois ainda tenho muito para andar até chegar ao meu destino. --- Eu vou para a Suíça, para Berna. ---- Ui! Tem muito que andar! Quando chega lá? --- Costumo demorar quase dois dias se tiver sorte, se apanhar a tempo um trem na Gare do Nort, senão posso até passar quatro dias nestas geringonças, até lá chegar. --- Então descanse, por enquanto há espaço bastante, somos nós duas e aquele casalinho que está lá fora... Meu nome é Isaura, ela Soraya e ele Filipe. Acabamos há pouco de comer e tirei uma pequena sesta, teve de ser a soneca do costume. Não consigo aguentar! Depois de almoçar tenho de dormir, começam-me os olhos a querer fechar e o corpo a esmorecer… até pareço doida, mas se não conseguir me acomodar num lugar decente, vai mesmo sentada numa cadeira, ou onde estiver, ou calhar… tenho de dormir uns minutos, é imperioso... --- Eu não sou assim tão exigente, mas qualquer um devia fazer isso, parece que dormir um pouco depois da refeição faz bem à saúde!.. Ainda me lembro da sesta dos nossos tempos, de como era importante para as gentes dos campos…! – Oh..! Quando eu era adolescente levava o almoço ao meu pai, esperava que ele comece, e via como ele depois se ajeitava sobre a erva na sombra da árvore, procurando uma pedra para servir como travesseiro, para dormir quase hora e meia… Tenho saudades desses tempos, dias tórridos e longos de Verão, em que todos nós procurávamos a sombra das árvores e fazíamos uma sesta depois de almoço. --- Era, isso aí! Dizia Isaura. No meu tempo, que sou mais velha do que você? Que idade tem? --- Tenho 54 anos feitos o mês passado. --- Dizia eu, no meu tempo também era assim. Mas meu pai levava já com ele para o trabalho uma saca grande que se chamava, se não me engano, uma saca espanhola, grossa e grande, que dava, assim, para dormir sobre ela… e, quando chovia dava para proteger da chuva, por ser grossa demorava a ensopar. --- Eh… Eh!… Outros tempos! Outros tempos! Esses, não voltam mais! E ainda bem!.., porque apesar destes difíceis, nesse tempo tudo era ainda mais difícil, afirmava Elisa.
No corredor continuava o casalinho, que tinham entrado agora em conversas mais íntimas, --- Mas, então, Filipe para onde vais, para que zona da Suíça? Perguntava Soraya. – Olha, por favor, não me faças perguntas difíceis! Não sei! Tenho aqui um papel com as gares que terei de pisar e os trens que terei de apanhar e puxava por ele. Ela olhava-o, mas era como burro a olhar palácio, tudo era estranho também para ela, nunca tinha saído de sua terra. E tu? --- Eu, fico em Austerlich!...Pelo menos foi o combinado! Dizia ela. ---Combinado?.. Com quem? Perguntou ele. Ela fazia um compasso, pensava bem e depois acrescentava, ah... o meu namorado… ---- Ah... tu tens namorado? Perguntava. --É...assim.., ela pouco convicta..., uma espécie de namorado, mas a gente não se ama, ainda, estamos aí num contrato, ele me arrauma um trabalho, me ajuda e vivemos juntos. Filipe ficou triste, muito triste. Não esperava que aquela moça por quem ele já nutria uma grande afeição se fosse juntar com alguém que não amava? Ou então estava a mentir! Fez-se silêncio. Longo silêncio…
O trem continuava no treco-treco, trecotreco, treco-treco, e lá dentro da couchete a conversa ia bastante animada…
Algum silêncio, depois, Soraya perguntava --- E tu, tens namorada? Ele, demorou um pouco, e tristonho, respondeu, --- Já tive, não tenho mais... --- Lamento, disse ela. --- Não, tem de quê, tudo bem, a minha vida nunca deu certo... – Mas, por quê? Só porque a tua namorada te deixou? Ele derrotado, disse: --- Não é isso!…. Ela morreu! --- Morreu!? Com quê? --- Fui eu que a matei! --- O quê!? Arregalava os olhos... --- Sim fui eu o culpado da sua morte, eu que ia a dirigir a viatura!.. Novamente silêncio. Por isso estou aqui, estou procurando sossego para o meu cérebro, tentando enganar minha consciência, procurando um lugar para trabalhar, habitar, reconstruir a porcaria da minha vida!.. torcia-se e encostava-se à janela. Ela afagou-lhe a cabeça e --- Mas... então, como foi isso?.. Não queres falar sobre isso? Desculpa… Mas tens de reagir, sei que deve ser duro conviver com um troço desses, mas a vida continua não se poderá restituir a vida a essa pessoa!… --- É… está certo, obrigado!
Soraya estava triste com a novidade, mas iria deixá-lo desabafar como ele quisesse, deveria fazê-lo, ninguém consegue viver com um pesadelo desses, ele precisava disso, mas ao mesmo tempo pensava, e eu que julgava que a minha vida era uma porcaria?..
Já no bar, pediram mais um refrigerante e, ali lentamente se foram descobrindo e o que a vida tinha feito com eles. Soraya também já tinha uma história longa de audácia na aventura e de sacrifício. Terminou mal amada por um homem que era doente psicologicamente, um ser fraco que a culpava de tudo, muito rude… até o não poder gerar um filho era defeito dela, quando todos exames e análises comprovaram que era dele o problema, o médico lhe disse, mas ele não queria acreditar que não pudesse gerar um filho, tão cabra-macho que era... Assim, tinha uma vida que era um inferno, ela era a má da fita, era sua a culpa e o ambiente de crispação era constante. Sentia-se infeliz, mas quando ele chegava a casa embriagado, então era terrível e pensava imediatamente em o deixar e partir para outra.…
Assim andou muitos meses e anos, até ganhar a coragem para enfrentar a fera e alterar seu paradigma. Estava agora dentro daquele trem, com uma certeza e uma fé inabalável que recuperaria os anos perdidos.
Agora ela também tinha uma estória, ele estava emocionado com o desvendar das suas vidas. Desnudando suas fraquezas, estavam conhecendo-se melhor, sentindo-se enfim mais leves, mais livres e confiantes, estavam como dois adolescentes de quem os pais tinham dado uma folga. Estavam felizes naquelas confissões de humanos, sem medos. Os semblantes estavam mais abertos, seus pensamentos se conjugavam, talvez se pudessem até aproximar mais..?
Não deixaria de ser interessante e belo um amor nascido assim, no trem da fuga… Eles falavam já abertamente dos seus anseios como se a seguir seguissem para a mesma casa e mesma cama, parecia que de repente o mundo tinha mudado por completo, eles não eram mais aqueles dois jovens assutados que D. Isaura tanto queria ajudar, estava se esvanecendo tudo aquilo de que tinham passado até ali, mas, sobretudo, do que não queriam mais passar, dos desastres que aconteceram, tentariam esquecer para todo o sempre.
Soraya enfatizava agora e dava graças a Deus por não ter engravidado, estaria agora numa enrascada muito maior, aquele não era o homem certo para lhe dar um filho...
Todos esses acidentes são agora coisa do passado, e se confortavam mutuamente como dois amigos de longa data. Filipe deu algum alívio a sua consciência e Soraya tinha desabafado e sentia agora que não estava sozinha no seu caminho, ou sentia-se, pelo menos, mais acompanhada…