A fuga continua
A atmosfera estava bem agradável…
Filipe na cauda da fila, comentava com Soraya: -- Está bem agradável o dia, tivemos sorte com a couchette, e em vez de seis vamos só os três... e até agora tivemos um papo bem prazeroso.. --- Calma, meu amigo, não se precipite! Ainda é muito cedo para fazer essas contas!… Atirava de imediato, Isaura. Esta viagem ainda agora começou, e é muito longa! Há portugueses, espanhóis, franceses, margrebinos e tanta, tanta gente por tudo quanto é canto, que a qualquer momento podemos ser invadidos nessas paragens que ainda faltam, até chegar ao nosso destino..! --- Ah, ?.. Surpreendido, Filipe. --- Claro! Pensava que estávamos sós? Como nós há muitos... muitos mais ,que a esperança também se situa lá na França..! Dizia com a certeza de quem conhecia bem o trem e os caminhos. Há dezenas de anos que fazia aquilo. Soraya participava na conversa, mas estava atenta às mesas que o garçom dava como prontas a serem ocupadas e acabava de descortinar uma lá bem no cantinho que lhe pareceu boa e exclamou --- Está ali uma, parece a ideal, bem posicionada! --- Então peguemo-la, rápido, disse Isaura, encaminhando-se para lá.
Estavam bem espirituosos, por momento até esquecidos, do por quê, estavam ali. Filipe não lembrava mais das suas fortes dores de cabeça, tonturas inquietantes, ataques de ansiedade de que era acometido, por não saber que fazer da sua vida. O seu ideário estava corrompido, não tinha como aliviar a tristeza dos seus pais, não haveria futuro naquele país nos anos mais próximo. Tudo era rudimentar, pobre, provisório, débil e sonhar era coisa só para loucos.. Soraya, essa estava experimentando uma sensação nova e extraordinária de liberdade, conhecendo novas pessoas, novos caminhos e novos mundos. Ao mesmo tempo tinha se visto livre do cafajeste que a manietou e assustou durante alguns anos. Torturador que em tempos a seduziu com promessas e carinhos... Era coisa nova, agora, a liberdade… A alegria de poder decidir onde e com quem estar, era qualquer coisa extraordinário. Há muito que seus anseios não contavam para nada, eram desprezados e a vida ameaçada. Reparava agora na descontração e simplicidade de D. Isaura que com muita a vontade, sutileza e graciosidade brincava com Filipe, tentando na matreirice saber alguma coisa da sua vida passada. Mulher experiente reparava neles parecendo-lhe serem gente boa. Dizia, se sentindo a avó que falava para os netos: -- E… nunca me deixaria secar num lugar onde não fosse feliz. As pessoas acovardam-se, por medo, falta de coragem, e ou por desconhecimento, e vão-se deixando ficar onde nada têm que fazer, nada as espera, os mesmíssimos dias todos os dias, tornando-se com o tempo, doentes e inúteis! Eu, cá, tenho ainda muitos sonhos para realizar!... E ria... Gosto de quase tudo o que gostava quando era mais jovem!.. Acho que continuamos sempre com a tal criança dentro de nós! E continuava, tenho vindo a reparar no vosso comportamento e nos vossos olhares assustados, - por favor, não me levem a mal -, vejo-os tão baços, tristonhos, e não posso deixar de ficar também triste, e ao mesmo tempo curiosa em saber o que de mal vos bateu a porta, na vida?.. A esta altura da conversa já eles se começavam a sentir inquietos.. Ela queria saber demais. E ela continuava: Dois seres que se acabam de encontrar aqui. Parece-me que simpatizaram um com o outro… parece que o vosso mal é semelhante, a avaliar pela minha dura experiência, e o passado também aqui neste trem, e não só…. Os problemas de cada um que se encontram por aqui, são quase sempre, os nossos, iguais ou semelhantes…
Que se teria passado com as minhas crianças?.. Sorria ao mesmo tempo que batia com as norsas dos dedos na mesa….Qual foi o clique que fez despoletar essa coragem para arriscar esta viagem?.. Infelizmente nosso país não nos dá alternativa a este caminho….! Parecem me tão boas criaturas!.. Filipe murmurou: A vida é complicada D. Isaura.., no nosso país sempre foi assim e se calhar sempre será! --- É.. isso! A quem o diz!? Sorria e continuava, mas dá pena que dois jovens aparentemente tão perfeitos, no auge da vida e da pujança, não sejam felizes!? Não vejo muito entusiasmo nesta viagem! Vejo sim, angústia…! E olhem que eu sei do que falo, já sou madura, já sofri muito, são muitos anos nisto, e a observar os outros... Às vezes até podemos enganar-nos, mas não, vós não tendes entusiasmo com a vida, tendes atrás de vós troços que vos deixam angustiados, apreensivos, no mínimo... Mas, cá vai uma palavra de otimismo, da Isaura: A gente nunca sabe onde estará o melhor para nós, a felicidade de um bom emprego com futuro, um bom marido para construir nosso ninho e criar nossa família, e, até mesmo o que é verdadeiramente a felicidade? O que é? É qualquer coisa que nos deixa alegres, realizados? Ou outra coisa? Há quem deseje uma coisa e outro, outra… e às vezes ela é isso, uma coisa, outra vez outra, um dia ela é de uma cor, outro de outra.., nós também mudamos nos nossos desejos, nossas ambições, depende muito do ambiente em que nós vamos estando envolvidos. Já lá dizia um político muito influente: só não muda de opinião quem é burro! Mas também temos ideias fixas, por vezes bem fixas e… algumas bem arreigadas, que não dá para se afastar delas, mesmo, por muito longe que esteja! É preciso procurarmos a cada momento a felicidade. É exatamente isso que nós procuramos fazer aqui neste momento! Procurando confraternizar com a alegria possível, no vazio de expectativa, e esquecermos, pelo menos, por momentos, porque estamos aqui…. Se nada mais encontrarmos neste convívio, pelo menos vamos ficar amigos, com recordação simpática da nossa passagem por esta aventura, eu espero… o que já é muita felicidade para nós, pobres... Mas o que idealizamos ou pretendemos idealizar é a outra felicidade, a plena, que não sabemos bem definir. É aquela…?.. para o futuro, nosso futuro, para sempre.., é o pouso do nosso ninho, do nosso lar. Essa por vezes está por ali ao nosso lado e não nos damos conta. Será sempre uma incógnita... Precisamos dar voltas e voltas, agitações, inquietação, entrega, para, ao fim de algum tempo, como por golpe de magia, se abrir à nossa frente a solução, que há tanto tempo estava ao nosso alcance e que não conseguimos enxergar. Isso nos surpreende e até irrita, como não pensamos nisso antes? É assim a vida. O momento mais marcante, às vezes é assim encontrado do nada. Acreditem que tudo ou quase tem uma solução. Para todos nossos desesperos nem sempre aparece logo claro o caminho, mas depois da vereda tortuosa que nos calhou, muitas vezes, mais tarde, na quietude da nossa alma, acabamos dando razão ao destino que nos maquinou e levou para ali, outro lugar, que nos assustou, e nos transformou a existência. Isso é à posteriori!.. Até lá vamos ter de pacientar e percorrer o caminho, que parece até já antecipadamente traçado.. E abria um sorriso largo...
Meu marido quando era vivo sempre me entusiasmava com seu bom humor, tinha conversas que nos animava, eu estou tentando fazer o mesmo com vocês, desculpem se estou abusando da vossa paciência, - parece-me estar a escutá-lo, – quando os encontrares em dificuldades, precisam de um conselho, uma atenção, uma informação, a maior parte deles sofrem por razões como nós, por caminhos desconhecidos, não sabem nem onde fica seu destino, nem donde vêm, foi o mesmo comigo -. Coitado, que Deus o tenha em descanso, tanto que sofreu e agora que poderia gozar a sua aposentadoria, comigo a seu lado, felizes no nosso canto, morreu de um momento ao outro, a mais de mil quilômetros da sua família, que também já não era portuguesa… Vá lá a gente entender a vida… que destino…!
Fazia-se um silêncio sepulcral... Os dois olhavam para o além algo enrubescidos com a surpresa lembrada por aquela senhora, cada qual procurando alguma coisa para dizer a seguir, como saída para a conversa daquele sapiente e sofrido ser, que parecia esperar de olhar piedoso, que os dois se lhe confiassem. Mas, os motivos, as origens, valores, desejos, desconfianças e os destinos seriam, ninguém sabia, quanto diferentes…? Mas ainda assim, Filipe deixou escapar – lamento muito, D. Isaura!..
Através das janelas fixavam-se em cenários abstratos longínquos deixados para trás, as imagens ali na frente passavam velozes que apagavam as outras. Ganhando tempo, de olhar pousado lá no horizonte e na coreografia que se ia sucedendo a velocidade estonteante, acompanhado pelo zumbido denso e batida seca de, treco-treco-treco-treco, treco-treco-treco-treco, treco-treco-treco-treco, cadenciado por aqueles brutos rolos de aço, que fugiam sobre os carris… O silêncio foi cortado pelo garçom que chegou com os cardápios. Isaura olhou-o e agradeceu, pousando-lhe levemente a mão sobre o braço, disse-lhe, meu querido, espero que esteja ai o que estou procurando, ele sorriu e ela mergulhou sobre o menu estendido! E lá estava, a jardineira de vitela que tanto gostava, bem à portuguesa. Os seus companheiros reentravam agora na conversa e,---- Então, D. Isaura o que vai comer? Perguntou carinhosamente Soraya.
--- Ah.. já escolhi! Meu prato predileto por aqui é sempre a jardineira de vitela! Gosto muito, não há igual!
--- Eu também vou nessa, disse Filipe pretendendo confirmar ser companheiro. Acho uma boa escolha. – E eu também, disse em seguida, Soraya. Vamos seguir a experiência, afinal, aqui, nós não conhecemos nada, quem faz isto há tantos anos, pode bem guiar-nos com segurança. --- Ah..ah.. Riam. Isaura ficou feliz por a considerarem e sentir-se útil, com sua idade e conhecimento. ---- Idade é vivência, experiência, disse ela. – E sabedoria, mas pode ser também decepções, sofrimento, convivência com o melhor e o pior, estou certo, acrescentava Filipe. Ela pensativa, assentia com a cabeça, avistando o garçom.
Feita a encomenda e, enquanto a comida não chegava, Isaura aproveitou para lhes explicar tudo aquilo que vislumbravam naquelas terras através da vidraça e, eram extensões enormes de floresta, plantio de algumas culturas, animais pastando e algumas aldeias como que semeadas por aqueles locais bem isolados dos principais centros importantes, daquele extenso território, e onde ainda há bem poucas dezenas de anos seus avós tiveram que fugir com os filhos às costas, e deixar tudo para trás, casa, negócio, emprego... os aviões italianos começaram a despejar bombas sobre as populações, na trágica guerra civil espanhola…
– Há muitas coisas que eu retenho e que me enriqueceram nestas viagens forçadas, dizia; pessoas que muitas vezes na maior pobreza nos dão lições de humildade, de humanismo e de coragem. Eu por aqui aprendi coisas com muitos seres fascinantes... Aqui se encontra de tudo, é um mundo num rolo contínuo sobre carris, destinos que se encontram e se compensam, almas inquietas que se acalmam, até as vezes problemas que veem nascer aqui a solução. Ambiente verdadeiramente caloroso e solidário… estamos todos para o mesmo, até ambiente charmoso, refeições saboreadas a alta velocidade. Ah... os amigos que tenho feito… as coisas que estes meus olhos viram… que nunca vou esquecer…
– Conheceu, com certeza, em tantos anos, também muita gente importante, indagava Filipe…
– Se conheci!.. Para além das personalidades famosas da nossa comunidade, também de vez em quando aqui se encontravam estrelas famosas de outras paragens, atores e atrizes que se deslocavam entre estes países, em atuações, especialmente no Verão, mas não eram muio vistas, elas se recolhiam nas carruagens de primeira classe, evitando assim o povão, e só na sala de jantar as víamos mas mais lá para o fim de todos os outros comerem. As outras, as muitas vidas dispersas por estas terras de Portugal, Espanha e França, a que se juntavam também os pobres magrebinos, que vinham apanhar o trem da esperança, porque lá também a vida era miserável, eu acompanhei. Como devem calcular, dá para tudo, a viagem eram uns dias, dependendo para onde fossemos, poderia mesmo, chegar a uma semana, hoje já se faz um pouco mais rápido, mas noutros tempos, ai o que nós passávamos para lá chegar! Os trens eram lentos e as rodas tinham que se trocar em Espanha para podermos entrar em França, e daí no centro europeu...
O garçom chegava com a encomenda no momento em que o sol tinha desaparecido no horizonte tapado por uma nuvem traiçoeira, deixando um ambiente noturno, encantador, na penumbra das fracas luzes que pendiam do teto. Fazia-se ouvir a vozearia excitada de contentamento por encontros inesperados, a alegria de reencontrar com alguém de um passado próximo ou distante, outros por se julgarem num qualquer restaurante da avenida da liberdade onde foram assistir um filme, antes do último encontro...
O ambiente era de festa, havia muita certeza, muito otimismo, caminhava-se a passos largos para o centro da Europa, para o regaço da milagrosa civilização que dava quase tudo, que poderia proporcionar infinitamente mais do que donde vinham... mas para trás ficava tanta coisa.., algumas, não mais recuperáveis...
Falaram de tanto sonho a realizar e outro tanto desfeito enquanto saboreavam a jardineira, mas Isaura estava no centro das atenções, todo mundo a conhecia ali, e de vez em quando tinha que dar atenção a mais alguém que não os seus companheiros. Mas ela não tinha desistido de descobrir um pouco mais das vidas daqueles jovens, e para potenciar a confiança contou como foi sua primeira vez naquele trem.
– Eu e meu marido passamos a fronteira a pé como se trabalhássemos em França, eram os chamados frontaliers que tinham um cartão especial, que nós conseguimos através do passador. Das sete às oito aí estávamos nós numa fila que se formava e que atravessava, todos juntos, cheios de medo, a fronteira controlada por um guarda, raramente alguém controlava um por um, era só caminhar e mostrar o cartão de frontalier, devíamos mostrar normalidade, não deixar transparecer algum receio, nervosismo, nunca chegamos a saber se o guarda estava comprado... O pior era atravessar a Espanha, não se sabia onde estavam os policiais, tínhamos que andar pelo meio das montanhas, apanhar o trem em algumas cidades e descer noutras, andar centenas de quilômetros a pé ou de táxi, ou de outra forma, e voltar a apanhar o trem, até chegar à fronteira de Hendaye. Foi assim. Depois, aí, apanhávamos o trem até Paris e já ninguém nos incomodava mais, a França era nossa protetora, o paraíso… Ainda hoje assim é, país da liberdade para todos….
Desta vez foi quando o meu marido me veio buscar, depois de ter ido sozinho e ter conseguido trabalho e casa para nós. Casa..? Eram os bidons-villes, bairros de lata, que se tornaram famosos em França, onde não havia condições, continuava a miséria, mas, pelo menos havia trabalho a ganhar melhor e a esperança no futuro… Eles escutavam atentos e diziam, como devia ser difícil…! Se era.., assustador…!
Sempre que se tropeçava em algum obstáculo já tínhamos tido instruções como deveríamos fazer, o português sempre soube ser solidário, uns com os outros, se explicava como nos deveríamos comportar para levarmos a vidinha direita…
Ela esperava algum gesto ou conversa que lhe pudesse dar uma pista, para atalhar com jeito determinada a saber algo mais, mas nesse aspecto o dia não estava correndo bem, não tinha tido muito sucesso, mas a viagem seria longa…
A refeição tinha de terminar, era preciso dar os lugares a outros que esperavam impacientes na porta de entrada, enquanto o trem apitava e se apressava a todo o vapor.
Depois daquela refeição, sentiam-se mais próximos, já amigos. Soraya já se afeiçoara a Filipe como se o conhecesse há algum tempo, seu jeito meio tímido e delicado a conquistara. Isaura matreira, curiosa, mas protetora com seu carinho preocupado, conselhos paternalistas, deixava-os mais tranquilos que chegavam a esquecer de onde acabavam de sair e para onde iriam. Nunca imaginariam que dentro de um trem de fuga se pudesse encontrar a fraternidade, a paz e a compreensão de que tanto vinham precisados, estavam surpreendidos…
De volta à couchette, Isaura de barriga cheia, sentou, encostou e adormeceu numa restauradora sesta, enquanto eles surpreendidos com a rapidez com que ela se apagou, se ficaram pelo corredor, botando conversa fora e apreciando o jato de vento que entrava num canto da janela e invadia suas narinas e pulmões a grande velocidade…