HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 4

SALÃO DE FESTA

Dos oito postos em que servi como diplomata, dois eram Missões junto a organismos multilaterais regionais. Em um deles, próxima à sala principal de reuniões ficava uma salinha usualmente conhecida como “Delegates’ Lounge”. Destinada a negociações privadas entre os chefes de delegações, à margem das discussões em plenário, a referida salinha também costumava ser utilizada para conversas informais, regadas a uísque, o que ocasionalmente a convertia em verdadeiro salão de festa. Não raro atraía, nessas condições, embaixadores mais versados ou interessados no nobre produto escocês do que nos temas da Ordem do Dia.

Como decorrência dessa prática, quem presidia uma sessão de trabalho via-se obrigado, por vezes, a instruir o pessoal do secretariado a dirigir-se ao “Delegates’ Lounge” e convocar quem lá estivesse para comparecer à reunião, a fim de assegurar o quorum nas votações. De modo geral, os convocados atendiam alegremente ao chamado do presidente da sessão, pois já se encontravam devidamente alegres pelos drinques tomados.

Havia ocasiões, no entanto, em que a participação desses egressos do salão de festa gerava constrangimentos. Incensados não só pela bebida, mas também pelo ar de importância que julgavam conferir-lhes a convocação do presidente, decidiam intervir nos debates de forma atropelada, o que complicava o curso dos trabalhos.

Episódio emblemático desse comportamento desastroso, por mim presenciado, consistiu na longa intervenção de um embaixador em prol da democracia. De natural pouco atuante no âmbito do organismo multilateral, o quixotesco representante resolveu mostrar-se e expor seu conhecimento (que não possuía) sobre o tema. Recorrendo a frases bombásticas e a citações sobejamente conhecidas, iniciou cantilena interminável e inconsistente com o item em discussão. Percebendo que o presidente parecia constrangido em interromper o colega, outro embaixador solicitou ponto de ordem (moção que detinha os debates) sob o argumento de que se verificara problema na interpretação simultânea para o francês. A interrupção da sessão para que se corrigisse o falso problema levantado fez com que o falante defensor da democracia perdesse o embalo e não voltasse a usar da palavra, permitindo a bem-sucedida continuação dos trabalhos posteriormente. Por sorte (ou pelo evidente estado etílico), ele nem se deu conta de que o colega que levantara o ponto de ordem sequer era francófono.

NEM PARECE

Ao longo de minha carreira diplomática, mais de uma vez escutei alguém comentar-me, à guisa de estranho, mas divertido elogio, que eu nem parecia diplomata. Por um lado, esse tipo de comentário divertia-me na medida em que meu jeito muito pessoal de ser surpreendia e, ao mesmo tempo, agradava meu interlocutor de ocasião. Ainda que não houvesse maior empenho da minha parte nesse sentido, parecer diferente dos demais sempre me soou desejável, ante o risco ou o receio da excessiva massificação como ser humano. Claro que o individualismo exagerado tampouco representa padrão ideal e sempre procurei privilegiar o trabalho em grupo, de modo harmônico e coordenado. Em suma e para simplificar, nada como o ponto de equilíbrio em tudo que se faz.

Por outro lado, o pretenso elogio refletia um juízo de valor desfavorável ao “modelo” que a maioria dos mortais tem do diplomata. Compreende-se que experiências pessoais negativas e o “diz que diz” tendam a gerar e a alimentar percepções de que os diplomatas seriam esnobes, metidos, insensíveis e pouco receptivos às pessoas em geral, dentre outros defeitos. Só posso lamentar que haja generalizações e estereótipos assim, pois minha experiência foi bem mais positiva, permitindo-me conhecer muitos colegas de grandes qualidades, com boa parte dos quais ainda mantenho positiva relação de amizade.

Voltando ao referido “elogio”, creio havê-lo escutado especialmente no exercício das funções consulares, quando naturalmente se torna maior o contato com integrantes das comunidades brasileiras no exterior. Apesar de minha natural e longeva timidez, não fugi a esse contato. Pelo contrário, procurei envolver-me o mais que pude com meus concidadãos residentes nas três cidades onde servi como Cônsul-Geral: Montréal, Vancouver e Assunção. Participei ativamente de eventos organizados pelas respectivas comunidades e também procurei desenvolver outras atividades que congregassem os compatriotas e atraíssem a atenção local para a cultura, as artes e outros aspectos positivos do Brasil. Foi um trabalho sem dúvida gratificante, que me gerou, de quebra, excelentes amizades, as quais me esforço em conservar, apesar da distância física (não obstante os benefícios da Internet, nada como um bate-papo presencial com os amigos, no barzinho ou onde for!).

FINIR EN DOUCEUR

Poucas vezes o propósito francês de “terminar de forma doce” foi tão difícil de alcançar quanto nas refeições que eu e outros funcionários da Embaixada em Luanda costumávamos fazer no simpático restaurante do Hotel Trópico. Quase nunca tínhamos oportunidade de concluir o almoço ou o jantar com uma boa sobremesa.

O problema decorria em boa parte da restrita disponibilidade dos pratos no cardápio do dia. Muitas vezes, pedíamos um prato e ele já se havia esgotado, frustrando nosso apetite. A limitação afetava, particularmente, as sobremesas. Quando chegava a hora e a vez das doçuras (frutas raramente se ofereciam no cardápio), mais nenhuma existia para contar-nos sua história.

Ademais da carência de alimentos de que se ressentia o cotidiano angolano nos anos difíceis logo após a independência, o ritual do serviço no referido restaurante contribuía sobremaneira para maximizar o risco de esgotamento dos pratos constantes do cardápio. Após sentar-nos à mesa, vinha o “maître” ou um garçom anotar nosso pedido de entrada. Somente viríamos a ser consultados para escolher o prato principal depois de consumida essa entrada. Da mesma forma se procedia quanto à sobremesa. Como cada fase desse ritual tomava tempo, invariavelmente se inviabilizava o último pedido.

Graças à iniciativa de um oficial de chancelaria que comigo serviu em Angola (meu futuro padrinho de casamento), foi possível superar o extremo desafio de “finir en douceur”. Conseguimos a boa vontade do “maître” para trazer-nos à mesa, antes de tudo, o carrinho das sobremesas, as quais escolhíamos e eram deixadas ali, à espera do final da refeição. Desde então, passamos a degustar bem mais a cozinha do Hotel Trópico.

Brasília, abril/setembro 2024.