Primeira Página

Maria estava em silêncio profundo, perdida em suas lembranças enquanto o peso da ausência do pai preenchia o ambiente. A casa parecia mais vazia do que nunca, e a saudade consumia cada espaço. Sua sobrinha, sensível ao sofrimento de Maria, decidiu visitá-la naquele fevereiro e março de 2006, na esperança de trazer algum conforto. Elas se sentaram juntas, em meio à dor que não pedia licença, mas a presença calorosa da sobrinha trazia pequenos momentos de alívio. Mesmo em meio ao luto, aquela companhia silenciosa oferecia um pouco de luz para o coração enlutado de Maria.

 

Naquele momento de luto, a fotografia era uma forma de Maria expressar seus sentimentos, e ela sempre se sentira conectada ao que suas lentes capturavam. Ao mostrar suas fotos para Moara, a ideia de compartilhar aquelas imagens com o mundo surgiu de forma inesperada. Moara, com o entusiasmo da juventude e familiaridade com a internet, sugeriu a criação de um blog de fotos, algo novo e desconhecido para Maria.

 

Mesmo sem nunca ter acessado a internet, Maria aceitou a ideia. Juntas, escolheram o nome "O que os meus olhos viram", refletindo a maneira pessoal e sensível com que Maria observava o mundo ao seu redor. A primeira foto postada foi uma folha seca de plátano caída no chão, uma imagem simples, mas repleta de significados, representando talvez o ciclo da vida e as marcas deixadas pelo tempo. Assim, com aquele pequeno gesto, o fotolog se tornou uma nova forma de Maria enxergar e dividir seu luto, suas memórias e seu olhar sobre o mundo.

 

Ao lado da imagem da folha seca de plátano, Maria escreveu uma frase que revelava muito de sua alma naquele momento: "Às vezes me sinto assim: uma folha seca caída ao chão". Simples, porém profundamente significativa, a frase traduzia a tristeza e o vazio que Maria sentia desde a perda do pai. Era como se ela estivesse à mercê dos ventos da vida, desgastada e sem rumo, assim como a folha, sem forças para se levantar, apenas aceitando o inevitável curso da natureza. A fotografia, combinada com suas palavras, tornou-se um reflexo delicado de seu estado interior, uma maneira silenciosa de processar sua dor e buscar algum sentido.

 

Ao longo daquela primeira semana, Maria postou mais algumas fotos, talvez sem muita intenção ou expectativas. Ela estava ainda imersa em sua dor, e o blog parecia um refúgio temporário, um espaço onde podia expressar sua tristeza sem precisar falar diretamente sobre ela. No entanto, depois de apenas algumas postagens, Maria deixou de lado o fotolog, sua mente ainda consumida pelo luto.

 

Moara, por outro lado, não se esqueceu do espaço criado. Quando voltou para visitar o endereço eletrônico, ficou surpresa ao descobrir que várias pessoas haviam visitado o espaço e deixado comentários. Eram mensagens de apoio, admiração pelas fotos, e até convites para conhecer outros fotologs. Mas Maria não tinha interagido com ninguém. Ela não havia explorado os links dos comentários, nem visitado outros fotologs ou a página inicial do site. Nem sabia como fazer isso. 

 

Antes de partir, Moara insistiu que Maria desse mais uma chance àquela nova comunidade. Pediu que navegasse pelos links - a ensinou pacientemente-, que conhecesse o trabalho de outros fotógrafos amadores, e que explorasse o que o mundo virtual tinha a oferecer. Havia ali uma chance de conexão, talvez até de cura, se Maria permitisse. Mas, para isso, precisaria dar o primeiro passo e se abrir para essa nova forma de interagir com o mundo.

 

Naquela manhã de domingo, solitária, Maria sentiu a ausência de Moara como um vazio palpável. Seu filho de cinco anos estava distraído assistindo desenhos, e, pela primeira vez, Maria decidiu aventurar-se no mundo do Terra, como sua sobrinha havia sugerido. Com uma mistura de curiosidade e hesitação, foi direto à página inicial do fotolog.

 

No canto direito da tela, cinco fotos chamaram sua atenção. Imagens vibrantes de montanhas banhadas pela luz do sol, flores desabrochando e, o que mais a cativou, um gato branco descansando sobre telhas vermelhas. Apaixonada por gatos, ela clicou sem pensar duas vezes.

 

Ao fazer isso, foi transportada para um universo encantador, repleto de mais de 1500 fotos maravilhosas. Eram imagens que falavam diretamente ao coração de Maria: gatos brincando, montanhas majestosas, telhados antigos, flores coloridas, caminhos solitários, e teias de aranha delicadamente cobertas por sereno e chuva. Seus olhos se perderam na beleza daquele blog, e por alguns instantes, Maria sentiu algo diferente—uma sensação de leveza, como se, através daquelas fotos, pudesse escapar de sua própria dor.

 

Aquela experiência foi como abrir a Primeira Página de um livro que ela nunca havia conhecido. Havia tanto a explorar, tanto a ver, e talvez, naquele mundo de imagens, Maria pudesse encontrar algo que lhe desse conforto, inspiração, e até uma nova forma de se reconectar com a vida.

 

Maria havia se perdido naquele universo de imagens, como se estivesse caminhando por um jardim secreto, onde cada foto era uma flor nova a ser descoberta. Com os olhos maravilhados, ela absorvia a beleza de cada cena, e as pequenas frases escritas no rodapé de cada foto faziam-na refletir profundamente. Algumas frases eram poéticas, outras curiosas, como "eles não brigam igual cães e gatos" sob uma porta entreaberta, onde um cão e um gato repousavam juntos na soleira ao sol. Ela e seu filho exploraram algumas dessas fotos juntos, e foi um momento de tranquilidade, uma pausa no tempo.

 

Após o almoço, quando o pequeno adormeceu, Maria voltou àquele mundo de imagens. Ao retornar à Primeira Página, deparou-se com uma fotografia que a fez parar. A cena era simples, mas carregada de significado: uma rua de paralelepípedos cinza-chumbo, um homem ao volante de um carro azul antigo, cercado por latões de lixo e pessoas apressadas na calçada. Havia algo melancólico naquela imagem, uma sensação de desordem e nostalgia. A frase abaixo da foto calou fundo em sua alma: "Antigamente, na minha cidade, se andava de carinhos e charretes. Agora o homem vive embrulhado em seu próprio caos".

 

Essas palavras pareciam falar diretamente com Maria, refletindo o que ela mesma sentia: um mundo que outrora era simples e familiar, agora tomado por uma confusão interna e externa. A imagem e a frase expressavam a perda de algo precioso e a substituição por um caos cotidiano, algo com o qual Maria se identificava profundamente. Ela sentiu um aperto no peito, como se aquela fotografia e aquela frase tivessem capturado um pedaço de sua própria história, do luto pelo pai, e da mudança irreversível que esse evento havia trazido para sua vida.

 

Maria, tomada por uma súbita onda de coragem, lembrou-se dos conselhos de Moara para interagir com os outros. O impacto daquela fotografia e da frase a atingira tão profundamente que, quase sem pensar, ela escreveu uma única palavra nos comentários: "É verdade!".

 

Foi um gesto simples, mas carregado de significado para ela. A confissão de alguém que, por muito tempo, havia guardado seus sentimentos para si. Assim que clicou para enviar, sentiu-se como uma criança que faz uma traquinagem e sai correndo, com o coração acelerado, temendo as consequências de sua ousadia.

 

Ela rapidamente fechou o fotolog, como se estivesse fugindo, com uma mistura de medo e excitação, imaginando o que poderia acontecer a seguir. Mas, naquele pequeno ato, Maria havia dado o primeiro passo para se abrir ao mundo novamente, conectando-se com algo além de sua dor.

 

Maria desligou o computador quase com pressa, como se quisesse fugir de sua própria ousadia. Sentia uma mistura de vergonha e medo. Não sabia bem o que temia, talvez o julgamento, ou simplesmente o fato de ter se exposto, ainda que minimamente. Eram pouco mais de 14 horas da tarde, e ela deitou-se na rede com seu filho, que acabara de acordar. Tentou se distrair, mas a frase "É verdade" e aquela imagem da rua de paralelepípedos com o homem ao volante do carro antigo não saíam de sua mente.

 

Cada detalhe daquela cena parecia ter se gravado em seu coração, e a frase que ela havia digitado ecoava repetidamente em seus pensamentos. A sensação de estar embrulhada no caos da vida a fazia refletir sobre suas próprias lutas internas, e a fotografia se tornava uma espécie de espelho de suas emoções. Embora tivesse desligado o computador, era como se a conexão que ela fizera com aquela imagem e com o mundo virtual continuasse viva dentro dela. Algo havia mudado, mesmo que sutilmente, e Maria sentia que aquele simples ato de interagir, por mais assustador que fosse, havia despertado algo novo dentro dela.

 

Maria, ainda intrigada pela experiência anterior, decidiu voltar ao Terra e revisitar seu fotolog, O que os meus olhos viram. Ao abrir a página, foi surpreendida por algo inesperado: vários comentários de uma mesma pessoa sob suas fotos, todos aparentemente recentes. Um deles chamou sua atenção em particular. Era uma foto onde Maria estava abraçada ao seu filho, que na imagem tinha apenas 3 anos.

 

Abaixo da foto, havia um poema. Ele começava assim:

 

"Seu nome é Rose? Então é fatal!

Quem tem nome bonito e esbanja beleza e..."

 

O poema continuava, falando de choro e saudade, tocando em sentimentos que pareciam ressoar profundamente com o estado de espírito de Maria. Era um texto cheio de emoção, e Maria não pôde deixar de sentir-se conectada com aquelas palavras, como se alguém estivesse falando diretamente ao seu coração, compreendendo sua dor e suas lembranças.

 

Ao lado do poema, apenas o nome de um homem e um e-mail. Nada mais. Não havia explicação, nem outros comentários dessa pessoa que pudessem sugerir suas intenções. Maria ficou olhando para a tela, surpresa e um pouco intrigada. Quem seria essa pessoa? Por que escrevia aquele poema? E por que parecia saber tanto sobre sentimentos que Maria mal conseguia expressar em palavras?

 

Tomada por aquele misto de constrangimento e medo, Maria lembrou-se das palavras encorajadoras de Moara. Sua sobrinha sempre a incentivava a interagir mais com as pessoas que visitavam seu fotolog, mas, até então, Maria resistia a essa ideia. Agora, com o poema em mente e os sentimentos que ele havia despertado, decidiu seguir o conselho.

 

Com o coração acelerado, escreveu um e-mail simples, mas sincero, agradecendo a visita e o poema que a havia tocado profundamente. Tentou não pensar muito nas palavras, apenas expressou sua gratidão. Ao final, sem pensar duas vezes, enviou também o link de sua página no fotolog, como uma forma de abrir uma porta para aquele desconhecido que havia deixado suas palavras.

 

Era tardezinha do dia 08 de março de 2006, e, ao clicar em "enviar", Maria sentiu uma leveza inesperada, como se estivesse dando um pequeno passo para fora de sua zona de conforto, talvez em direção a algo novo, algo que nem ela sabia ao certo o que seria.

 

Ao entrar no fotolog, Maria logo se deparou com um novo comentário sob uma de suas fotos. O nome que ela viu a fez sentir um frio na barriga: José. A confirmação a invadiu com uma onda de emoções. Era ele, o autor dos comentários e do poema que a havia tocado tão profundamente. Havia uma conexão que parecia transcender o virtual, como se suas almas poéticas dançassem em sintonia.

 

Maria começou a explorar mais as páginas de José, e logo percebeu que, em cada frase que ele deixava, havia um eco dos sentimentos que ela também guardava. Ele escrevia com uma sensibilidade que a tocava, e a poeticidade de suas palavras parecia ressoar com as emoções que ela sentia, mas que por tanto tempo havia escondido. Em cada imagem, Maria se perdia como se estivesse folheando um livro cheio de histórias não contadas, deixando rastros por onde passava.

 

Na imagem da tempestade, escreveu: "Às vezes, ela acontece dentro da gente!" Aquela frase era um reflexo de seu próprio tumulto interno, da luta que enfrentava diariamente. E na foto que continha a frase sobre os 70 anos de sonho, Maria se sentiu inspirada a deixar sua marca, escrevendo: "Mesmo aos 70 anos de sonho, você merece ser feliz!"

 

Com cada palavra, Maria sentia-se mais viva, mais conectada. Sua dor começava a se transformar em algo belo, uma partitura de sentimentos que fluíam através da fotografia e da poesia. A cada interação com José, ela se abria mais, como uma flor que desabrochava, permitindo que a luz entrasse em seu coração novamente.

 

Aquele dia foi mágico. Maria adormeceu com a mente fervilhando e o coração retumbando uma sensação de encontro consigo mesma. De estar frente a frente à si mesma num espelho. A ligação imediata com a alma daquela homem fazia Maria ficar sem ar. Surpresa, estupefata, não conseguia parar de pensar naquelas fotos e nem nas frases profundas e belas abaixo delas. Adormeceu com o sentimento de ter se deparado com sua própria ancestralidade, consigo mesma vindo de algum passado, de algum lugar distante... que... mesmo nunca ter lá colocado os pés, sabia ser seu. Tinha certeza absoluta que aquela Primeira Página era a memória de um mundo em que ela já tinha vivido e a alma por detrás de cada foto, de cada pensamento tão conhecida sua como se vivesse dentro dela...

 

Na foto: Maria, com seu filho "Guerreiro Forte" de apenas três anos!