Os anos do seminário em Carpina (PE)
Os anos do seminário em Carpina (PE)
Nos anos 90, 91 e 92, estava começando uma nova jornada. Fui ser seminarista Salesiano, no colégio Padre Rinaldi, na pacata cidade de Carpina.
Pe. Rinaldi, foi um dos primeiros alunos de Dom Bosco, que deram continuidade a congregação Salesiana, de padres e irmãos coadjuntores, criada para dar continuidade as obras sociais de Dom Bosco.
O prédio do Seminario é enorme e tem dois andares. Duas capela, um teatro, dois refeitórios e diversas salas. Dois campos de futebol. Quatro quadras de futebol de salão. Ou seja, muito espaço com terreno em todas as direções.
Carpina, na época, era uma cidade fria, onde a Mata Atlântica ainda estava muito presente. Não tinha ainda sido devastada pelo desmatamento ganancioso da humanidade. Chovia muito, mais que no restante do Estado de Pernambuco.
Além de estudantes de Carpina, a escola tinha alunos de Limoeiro do Norte e várias outras localidades próximas, além dos filhos de donos de engenhos, homens da elite.
Muitos diziam que ser seminarista pode, na época, ter sido algo “careta”, para outros uma meta difícil e ainda outros, uma “aventura”, no sentido positivo da palavra.
Para entrar, tivemos que passar por um processo de acompanhamento de nossos vigários. No meu caso, de meu amigo Rani Lopes, éramos acompanhados por Pe. Guido Tonelotto (in memoriam), que foi o primeiro diretor daquela instituição.
O colégio Salesiano Padre Rinaldi sempre foi um dos melhores da região. Com professores preparados, com formação principalmente na Universidade Federal de Pernambuco.
Nós, os alunos internos, como nos denominavam, no início do ano, chegavamos uma semana antes do início das aulas. Durante essa semana fazíamos a limpeza do seminário e o planejamento dos horários e das atividades do semestre. Cada um escolhia onde iria ficar. Seu quarto, sua mesa de estudo, etc. Montavámos as equipes para lavar pratos, todos os lugares da casa e de preparar as missas.
Também tinha instrumentos músicais. Quem soubesse tocar alguma coisa, tinha a sua disposição instrumentos. Bem poucos chegaram a se ordernar, mas nenhum chegou a seguir na vida religiosa. Todos abandonaram.
Tenho lembrança apenas de alguns salesianos (irmãos religiosos e padres) e seminaristas que conviveram conosco durante esse período. Dos padres lembro de Pe. Aristides (diretor da escola e da comunidade), Pe. Rolim (in memoriam), Pe. Benevides (in memoriam) e Pe. Euclides. Dos irmãos lembro de Sr. Chico (in memoriam), Sr. Oliveira (in memoriam) e Severino (Biú). Dos assistentes lembro de Sueldo, Pe. Ronaipe, Pe. James e Pe. Baronto. Também tinha o vigilante e dois cachorros de raça, que serviam para vigiar o prédio. 22:00 horas da noite, nós não podíamos mais ir no refeitório, pois os cachorros só obedeciam a quem eles os "conheciam".
Entre os aspirantes no início do primeiro ano, que eu lembre, estava eu, Rani, Anderson, Marcelo, Aquiles, Tomé, Raimundo Felipe (Pe. Felipe, da Diocese de Mossoró), Francisco de Assis, Cleiton, Luiz Fernando, Afonso, Sales, Severino e outros que foram chegando entre os três anos. Adolescentes cheios de energia, querendo mudar o mundo através da religião.
Os professores, a maioria já não se encontram entre nós, formavam uma base humana bastante sólida e nos ajudava a enfrentar as dificuldades, diante dos tabus que os padres carregavam e não podiam dar uma luz maior para os aspirantes. Don Dito de Biologia (in memoriam), Djair de Geografia (in memoriam), Osvaldo (Física), Auxiliadora de História, Ivone de Química (in memoriam), Ivanildo de Português (in memoriam) e Matemática (Marcos e Severino), Educação Física (não recordo), Inglês (não recordo).
No início, as afinidades foi por região. Eu e Rani, por sermos de Mossoró (RN). Raimundo Felipe e Francisco de Assis por serem de Areia Branca (RN). Anderson, Aquilés e Cleiton (Aracajú/SE). Com o tempo nós e os outros fomos nos entrosando e conseguindo confiar mais na outra pessoa. No outro ano, sempre tinha mais um para fazer parte da "família".
A Educação Física dos internos era somente entre nós. Acordavamos de 4:00 da manhã, com chuva ou sem chuva, frio ou sem frio. E íamos jogar futsal, vôley e handbol. Futebol de campo jogavamos no sábado de tarde. E geralmente, tinha alguma visita.
A liturgia, também era combinada na primeira semana. Três missas por dia. Café da manhã, aulas, almoço, descanço, limpeza, esporte, estudo, jantar e Boa noite. Esse Boa noite, sempre era um padre ou algum irmão que iria transmitir a mensagem para todos. Todas as segunda-feiras, colocar a roupa suja na lavandeiria e pegar de volta nas sexta-feiras.
No planejamento, era observado o calendário. E os retiros, na maioria das vezes, eram realizados nos feriadões. Poderia ser no próprio seminário ou no santuário de Maria Auxiliadora, em Jaboatão dos Guararapes. Sempre com algun salesiano de outra casa, sendo convidado para nos ajudar a fazer uma reflexão.
Uma biblioteca enorme saltava aos olhos. Foi onde comecei a ler a Ilíada e a Odisséia, de Homero. Era um clima de alegria. Conseguiamos escutar a FM Transamerica, de Recife, quando podíamos escutar rádio. Através dela escutei o Legião Urbana, e fiquei impressionado como alguém poderia fazer uma letra tão feliz.
Os religiosos tinham uma sala para assistir tv ou para conversar e nós tínhamos outra, onde podíamos jogar tênis de mesa, totó, baralho. De vez enquando, o assistente ou diretor vinha marcar presença na sala de lazer conosco. Aos sábados, era dia de alugar algum filme na locadora. Eu era quem ia alugar o filme para assistirmos no final de semana. Na época, os videocassetes estavam em alta, principalmente em uma cidade onde o cinema ficava a duas horas da cidade.
Na copa do mundo de 1990, estava eu e Pe. Aristides, assistindo Brasil e Argentina, na sala dos padres. Um jogo bom. Maradona, com toda sua técnica, pega a bola e passa para Caniggia que faz o gol e elimina o Brasil. Eu e o Aristides, nos olhavamos sem acreditar. Tristeza. Os outros, que não gostavam de futebol, estavam todos no jantar. O padre nos fez uma reflexão sobre não julgar nada a priori, mas a posteriore.
SÁBADOS
Nos sábados pela manhã estavámos "livres", caso não tivesse nenhum tipo de evento religioso. Quem quisesse ou precissasse ir ao centro da cidade enviar cartas pelos Correios, andar no centro de Carpina, comprar algun utensílio que precisasemos e fazer um lanche tinha total permissão.
Em uma das primeiras vezes que fui enviar a carta fui repreendido por uma funcionária ao usar a língua para colar o selo. Ela me disse que não era higiênico. Para ela, parecia óbvio demais para todas as pessoas. Descobri que quando se coloca "carta social", a carta ficava por um valor simbólico.
A ÚLTIMA TENTAÇÃO
Nesse momento, no cinema e nas locadoras, é lançado o filme A última tentação de Cristo. Filme bastante polêmico. Afonso Chaves, um dos seminaristas, cansado de tanta "mesmice", decidi ir comigo até a locadora. Aluga o filme e assiste sozinho ao filme. Nesse momento, a certa altura da noite, tem um embate entre ele e o assistente Baronto. Nisso, observei que Afonso usou todos os argumentos, para convercer da necessidade em assistir o filme. E parece que conseguiu convecer.
Fartura de mel, cana-de-açucar, jacá, laranja lima e carambola. O responsável pela apicultura era Sr. Chico. Além disso, cuidava de outros assuntos referentes a alimentação. Na cabeça dele, tínhamos que passar por tudo aquilo que ele passou para nos tornar salesianos ou não seríamos merecedores. Isso despertou em alguns de nós um certo distanciamento. O contraponto a Sr. Chico, quem fazia era Sr. Oliveira (ambos irmãos coadjuntores). Um conhecedor da literatura mundial. Adorava falar sobre livros. Foi dele que escutei a primeira reflexão sobre Karl Marx. Fiquei encantado com ele e com o filósofo alemão.
Nessa época, os autores mais consumidos eram Rubem Alves, Leonardo Boff, Nieztsche e Erich Fromm. Além, dos autores brasleiros, como Machado de Assis.
A AMANTE DO PADRE
Ficamos sabendo que um dos padres tinha uma amante. Comentamos, de forma discreta, o tema entre nós. Pois, sabíamos que, talvez, em um futuro próximo, poderíamos viver algum tipo de situação semelhante. Então, não houve por parte dos aspirantes, qualquer tipo de distanciamento, do religioso. Pelo contrário.
Tudo que parece perfeito, aos poucos vai mostrando suas limitações. Comecei perceber algo diferente ao escutar a alegria dos pais e dos alunos, quando estes iam pegar seus filhos para levar até suas casas. Sentia tristeza e um “buraco no estômago”. As águas da chuva se misturavam com minhas lágrimas.
Outra coisa, que também não questionei, foi o fato de não se falar em afetividade ou sexualidade. Era como se fossemos assexuados. E com certeza, aqueles homens religiosos estudados, poderiam ter tirado nossas dúvidas. Porém, eles não tinham certeza de nada e também precisavam ser orientados, ou já tinham sido.
PROBLEMAS DE SAÚDE
Não tivemos problemas sérios de saúde. Porém, lembro de dois que deixaram forte lembrança. O primeiro deles, foi quando estavámos na Ilha de Itamaracá, passando o feriado de carnaval. Lá, os salesianos tinham uma casa de praia, com piscina, onde a diversão e o descanso eram certos. Pe. João Carlos Ribeiro, que fora ser o convidado para nos ajudar a refletir, saiu para pescar. No mar, ele tentou pegar uma arraía e foi atingindo por ela. Precisou ir até um pronto socorro, para tomar uma medicação. Lembro que a dor foi muito intensa e ele precisou ficar descansando.
Outro problema, foi o amigo Anderson que passou a sofrer com uma pedra no rin. A dor era tanta que ele suava. Devido a nossa amizade, ele me chamou para ir com ele até o pronto socorro. Chegando lá, depois de uma injeção, ele conseguiu expelir a pedra para fora do corpo. Foi um alívio grande, para ele e para nós, que de certa forma estavámos sofrendo com aquela situação.
Devido a criação de abelhas, sempre estavámos consumindo mel depois do almoço, o que deixava nosso organismo imune a muitas doenças. Não recordo de nada mais sério, nesse período.
Sr. Oliveira era um irmão que não se tornou padre, porque estudou demais. Sua inteligência era admirada por todos nós estudantes. Ele chegava, quando irritado por falta de medicação, a soltar cada resposta, que ficávamos de boca aberta. Sua inteligência se mostrava através inseghts, lançando luz em diversas ocasiões quando não tínhamos respostas para certas situações. Os pequenos alunos, era quem conseguia fazê-lo sorrir com mais constância.
Nos domingos, a paróquia tinha um programa na rádio AM, chamado Preparando O Dia Do Senhor. Esse programa tinha a frente, o amigo Luis Alberto Ribeiro (ex-salesiano), Glorinha e eu como auxiliares. Luís fazia a reflexão do Evangelho do domingo, eu a leitura e Glorinha dava os avisos. Durante o restante do dia, íamos para a missa, estudar ou fazer alguma atividade do nosso interesse.
Também era nos domingos e nos aniversários sempre tinha uma refeição bem mais saborosa, preparada pelas cozinheiras da "casa". A celebração vinha da missa até a refeição. Os dias tensos ficavam quando saia algum por motivos de indisciplina de maneira geral. Quem ficava e era amigo de quem era convidado a deixar a caminhada precisava encontrar algo para ocupar a mente. Nem sempre era "indisciplina" o que causava o convite.
Quando precisavamos telefonar para casa, íamos no orelhão. Compravamos fichas e ligavamos. Falavamos o tempo que dava. A saudade já não era tão grande. E sempre tinha uma carta para amernizar as coisas.
Na sala de aula, fiquei conhecido como Lino, da turma do Snoopy. Aquele que sempre andava com o lençol no chão. Dormia na sala de aula, porque ficava estudando até tarde da noite. O reflexo vinha no outro dia na sala de aula. A turma da sala de aula sempre foram amigos importantes na caminhada.
Gostava da maioria das matérias, menos de inglês. Devido a formação da Teologia da Libertação, pensava que falar inglês não teria nenhum proveito. E um dia antes da prova escrevi no quadro: ”Yo non quiero hablar english.”, irritando bastante a professora, que era muito idosa mas bem delicada. Como não tinha estudado, coloquei uma cola, embaixo da carteira. Veio um vento e a cola saiu do lugar e caiu com todas as respostas para cima. Eu tive uma crise de riso nesse momento e todos me perguntavam do que eu estava rindo. Fui rápido o bastante para sair daquela situação embaraçosa.
Quando acontecia algo internamente, conosco, eles percebiam. Principalmente, quando tínhamos nossas crises. Alunos e professores “sacavam” que algo estava ocorrendo e que necessitavamos de algum tipo de ajuda, mas isso nunca ocorreu nesses 3 primeiros anos. A única vez que tívemos uma psicóloga a nossa disposição, foi somente durante um evento.
Festa junina, Feira de Ciências, viagens para cidades como Garanhúns, Caruaru ou para a ilha de Itamaracá faziam o diferencial. Tirava-nos da rotina.
No horário da noite, funcionava a escola pública, para alunos que não podiam pagar o colégio. Era uma forma que os salesianos encontravam para beneficiar como seu método educativo, a comunicadade menos beneficiada, financeiramente falando. Quem tivesse as melhores notas ganhava uma bolsa para estudar no horário diurno, porém quem estudava de noite é porque trabalhava durante o dia.
VISITA DE JOAÕ PAULO II
Em 1991, o Papa João Paulo II veio ao Brasil e entre as capitais do Nordeste, passou por Natal. Todos os salesianos, padres, irmãos e seminaristas foram em uma grande comitiva. Fomos em um ônibus da congregação. Aspirantes, postulantes, noviços e filósofos. Além de muitos de nossos famíliares. Foi um marco. A emoção era grande, pois uma oportunidade de ir ao encontro do Papa não se encontra todo dia. Chegamos a vê-lo de longe, é bem verdade. De qualquer forma, valeu a experiência, o dia festivo.
Durante esses três anos aprendemos muito uns com os outros. Além, da disciplina que as tarefas nos obrigavam a ter como acordar cedo, cuidar da sacristia, da limpeza, passando em colocar mantimentos como vinho, hóstia, água, pratos em refeitório, copos, talheres, xícaras, pires, cadeiras, ser “exemplo” para os alunos.
O último ano, estavamos diante de pressão pura. Queria saber se iríamos para o Postulantado ou não. Os membros da comunidade Salesiana de Carpina iria avaliar as cartas com os devidos pedidos. Ao mesmo tempo, estavámos estudando para terminar o Segundo Grau e retornar para nossas casas. Ficar em recuperação não era o desejo de nenhum de nós, principalmente Anderson, Afonso, Aquilés e eu. Fomos esperar a nota na praça, em frente a casa do professor de Física, Osvaldo. Quando ele nos viu nos disse que tínhamos passado. Viemos todos embora.
“Dies posterior prioris est discipulus.”
Canindé Neres