Chafariz, tempestade e ramo bento

A chuva forte não quer parar. Relâmpagos, raios e e trovoada se unem para aterrorizar a cidade. Com certeza, assim começará o fim do mundo. Sem tevê, sem Repórter Esso, a familia se junta na sala e reza o terço. " Oh! meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do Inferno, levai as almas todas para o céu e socorrei, principalmente, aquelas que mais precisarem".

Os relâmpagos e raios não param no Beco dos Canudos. Mamãe me pede pra buscar as folhas bentas na última Procissão de Ramos. É só queimar o ramo bento e acaba a tempestade. No caminho, me assusto: ao passar pela copa, constato que a enxurrada barrenta inunda o porão. Lá estavam cozinha, despensa e banheiro. O sinal aterrorizante era o toco de madeira flutuando na cozinha. Servia de primeiro degrau para sair do porão e subir à copa, pensava que jamais se moveria daquele lugar. Algumas vasilhas já estavam à deriva. Volto apavorado pra contar e, ao mesmo tempo, batem na janela da sala.

Ao abrir para atender, percebemos que a água está chegando ao nível das venezianas. Quem chama são os vizinhos. Tinham se movimentado e tomavam providências. A frente de socorristas se compunha deTio Zezé, Lourival da Dalva, o turco Mansur e Sô Neném Relojoeiro. Todos de calças arregaçadas, enxadas, pás e picaretas a postos, exceto Sô Neném. Ele, num acidente, tinha perdido um dos braços e dedos da outra mão. E pasmem: era relojoeiro... e dos bons. Naquele momento atuava como o líder dos socorristas. Os intrépidos vizinhos vinham pedir reforço, meu pai se apresentou sem relutar.

Naquele momento já tinham identificado a razão da inundação: o bueiro debaixo do chafariz, entre nossa casa e do tio Zezé, estava entupido. Era na parte mais baixa do Beco dos Canudos e, até há pouco tempo, continuava servindo de depósito de lixo. A primeira grande chuva daquele ano não encontrou saída e, para começar, arrancou o portão dos fundos de nossa casa. Em meia hora, os socorristas improvisados desentupiram o bueiro do chafariz, a água seguiu para o córrego, a chuva parou e pudemos dormir em paz.

Anos depois, chega o calçamento à rua, o chafariz é arrancado, fica uns dias por aí e depois é levado embora. Vi-o, pela última vez, abandonado na Olaria, na baixada da Av. Antônio Fiúza.

Fica a pergunta que não quer calar: o que terá acontecido àquele chafariz?