saudades que rasgam o peito
Tenho em mim saudades que rasgam o peito.
Tenho em mim memórias, que moram junto a dores que atravessam o amor, os abraços, as melodias, as canções, os sabores, os aromas...
Tenho em mim memórias do refúgio que agora se refugia em mim.
Tenho memórias daqueles aromas. Do cravo, do pão que estava pronto para sair do forno, da calda de chocolate que se espalhava pelo bolo, do café coado e dos bolinhos de chuva pelas manhãs.
Tenho memórias daqueles sabores que são tantos e que hoje vivem confundidos às lágrimas. Daquele pão que comíamos com os olhos (felizes), da sobra das massas e das caldas dos bolos que ficava na travessa, das jabuticabas e acerolas que colhiamos do seu quintal, do frango grelhado na manteiga, das feijoadas que aprendi a gostar (apenas da sua), da couve, da batata frita, do frango à passarinho, do bife com aquele "caldinho da Paulinha". Daquele Strogonoff que se traduz na dor de um dos meus sentidos que te acessou pela última vez.
Tenho memórias das canções de ninar e de acordar. "A cuca vem pegar" quando anoitecia. Mamãe foi trabalhar, o papai também, mas a vovó sempre estava aqui. Na manhã seguinte a cuca aparecia com o rosto coberto e depois revelava que era... "A VOVÓ!!" Foi assim ao longo dos meus 5, 6, 10, 15, 20, 24... Um dia a criança acordou aos 25 e a cuca e nem a vovó apareceu. Nunca mais.
Tenho memórias da melodia que se formava em volta do meu nome, quando você me chamava por "Paulinha". Da melodia em torno do "Fica com Deus, a vovó te ama".
É como se a "Paulinha" se perdesse no vento, junto às bençãos e o amor que você me dava. E de fato se perderam. É como se a sua Paulinha não estivesse mais aqui desde que você se foi. Ela optou por fazer morada, junto com você, no lugar mais fundo do meu peito.
Muitas vezes a paulinha aparece a noite buscando por colo. As vezes, Paulinha se lança a luz do dia, e se perde a procura de um refúgio que não existe. Uma moça com olhos d'água, cuja identidade ainda é desconhecida, a acolhe e se lança junto a ela nas correntezas do absurdo que a vida se tornou.
E nessa correnteza, a moça e a Paulinha são lançadas às memórias de um amor que costumava se enterrar num abraço, que se encontrava naqueles olhares e se entregava ao cuidado. Elas encontram um amor medroso que se perdia na ideia de perder, mas se afogava no colo que o esperava. Num amor que hoje acorda perdido, desafogado daquele colo e transbordado em riachos e marés de dor que, vez ou outra, deixamos doer.