HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 3
CASCATA INESQUECÍVEL
Dos países que minha família e eu visitamos, a Tunísia certamente se destacou no quesito referente à cordialidade do seu povo.
A visita ocorreu em 1991. Hospedamo-nos no Clube Med de Hammamet, por sinal a única vez em que nos concedemos o luxo de usufruir dessa rede hoteleira.
A estada foi bem apreciada, fruto não apenas da praia agradável e das confortáveis instalações do hotel, mas também da simpatia de todos os tunisianos com quem tratamos. Quanta disponibilidade para prestar informações e ajudar! Cada um esmerava-se em responder às indagações e a oferecer a melhor orientação possível.
No tocante às iguarias servidas no hotel, havia garçons que até se excediam nas gentilezas. Chegavam a convidar seus interlocutores a vir experimentar o mesmo prato que a mãe ou a esposa fazia em casa, evidentemente com a superioridade do tempero caseiro. Não cabia dúvida do prazer que teria o autor do espontâneo convite em receber algum visitante no seu lar.
Quando alugamos um carro e saímos do hotel para visitar Cartago e Sidi Bou Said, contamos igualmente com a invariável cordialidade dos ocasionais informantes. Todos extremamente prestativos, sem exceção.
Um tunisiano que conhecemos nesse passeio foi bem além do que lhe perguntamos e indicou, como imperdível, praia próxima com linda cascata desaguando no mar. Decidimos conferir, satisfeitos em ver que a rota até o local era de fato bonita, como descrevera nosso dublê de guia turístico.
Ao chegar à praia em apreço, contudo, tivemos relativa decepção. Além de notar que a grande maioria dos freqüentadores adultos não dispensava seus trajes longos para banhar-se ali (o que inibiu minha esposa e eu de acompanharmos os meninos), verificamos que a badalada cachoeira não passava de água despejada por um cano sobre as pedras na beira do mar. Restou-nos constatar, divertidos, que a atração turística correspondia a uma autêntica “cascata”.
NEVE AGAIN - segundo episódio
Já afirmei anteriormente que não me incluo no fã-clube da neve. Branca e inspiradora nas florestas e montanhas, mas fonte de sujeira e transtornos no âmbito urbano.
Meu maior problema, entretanto, consiste em que a danada parece gostar de mim muito mais do que eu dela. Se não, vejamos.
O primeiro contato com a branquinha ocorreu durante a estada em Washington, entre 1978 e 1982. Inicialmente bem acolhida, a neve exagerou logo a seguir. No inverno de 1979, em pleno aniversário de George Washington, caiu uma nevasca como há cinquenta anos não se via, com acúmulo ligeiramente superior a sessenta centímetros.
Isso significou que a neve chegava quase à maçaneta das portas da entrada principal e dos fundos da “townhouse” onde vivíamos. Exigiu grande esforço empurrá-la com a porta para poder-se simplesmente sair de casa. Como não bastasse, os automóveis estacionados na rua viraram pequenas montanhas brancas, o que nos obrigou a passar quase o feriado inteiro a trabalhar com a pá. Para piorar, no dia seguinte, tivemos de enfrentar o risco de atolar o carro na neve, pois minha esposa tinha prova na universidade. Ao heroicamente chegar lá, descobrimos que, contrariamente à afirmação de seu professor de que o educandário jamais fechava, as atividades foram suspensas em razão da nevasca.
Onze anos depois, ao servir em Bruxelas, onde raramente nevava, segundo os sábios doutos, meu primeiro inverno foi aquinhoado com dose recorde do produto. Havia décadas que os belgas não enfrentavam intempérie similar. O acúmulo foi de pouco mais de dez centímetros, mas suficiente para quase paralisar o usualmente caótico trânsito da capital da Europa. Fui forçado a permanecer no escritório até tarde da noite para só então, ao primeiro sinal de que os carros voltavam a circular de modo “normal”, sair e resgatar minha esposa, ilhada na casa de amiga.
Em 2007, foi a vez de Vancouver, uma das cidades canadenses de inverno mais ameno e com pouquíssima neve, como de resto pudemos comprovar nos três anos e meio que lá permanecemos. Só que...
O inverno de 2008 quase entrou para a História. Por um mísero centímetro, a neve acumulada não superou o recorde estabelecido no século ou no milênio anterior. Fiquei pelo menos dois dias sem poder tirar o carro da garagem. Isso porque as garagens das casas tinham saída para uma ruela, secundária, quase exclusiva dos moradores. Se uma cidade desacostumada com neve já tinha dificuldade para limpar artérias mais importantes, imaginem se iria desobstruir ruelas de uso doméstico.
A exemplo de Washington e Bruxelas, Vancouver estava “despreparada” para lidar com neve. Nisso, todas diferem de Montréal, onde também servi e a bandida não falta. Por falar em Montréal... não, não, deixemos para o terceiro episódio.
COLEGA AZARENTO
Creio poder incluir-me entre os diplomatas mais sortudos em matéria de chefia. Tanto os chefes de divisão e diretores de departamentos quanto os ministros-conselheiros e embaixadores com os quais trabalhei foram pessoas de fino trato, que me proporcionaram muita satisfação, profissional e pessoal.
Um desses colegas tinha, contudo, a má-fama de “dar azar”. Como era comum aos supersticiosos bater várias vezes na madeira para espantar a sorte ruim, contam que, certo dia, a secretária do diplomata exagerou nas batidas na porta para entrar na sala e ele logo teria exclamado: “não precisa fazer isso. Não é verdade o que dizem de mim por aí”.
Nunca me preocupei com essa má-fama e jamais evitei, como outros colegas faziam, pronunciar o nome do meu estimado chefe. Anos mais tarde, necessitei dispor de três cartas de recomendação pessoal para uma atividade à qual me candidatei. Para evitar o risco de eventual atraso no recebimento das tais cartas, solicitei-as a uns quatro ou cinco diplomatas, inclusive àquele antigo superior.
Já contava com as três recomendações requeridas quando chega a carta do mal afamado. Sendo o mais graduado de todos a quem solicitei a gentileza, decidi utilizá-la.
Não é que, ao abrir o envelope, a espátula cortou a carta ao meio? Foi esta a única vez que me aconteceu danificar uma correspondência! Lamentei não poder entregar o simpático texto que recebera. Ao comentar o ocorrido com outro colega, ele riu muito da desventura e afirmou: “também pudera! Quem mandou recorrer a um azarento desses”?
Continuo a crer, porém, que tudo não passou de hilariante caso fortuito. Houvesse necessidade de novas cartas do gênero, eu teria recorrido ao saudoso chefe (que, por sinal, veio a prestar-me valioso auxílio quando servi no Canadá pela primeira vez).
Brasília, março 2024.