Fisgada
Eu passava em uma rua cheia pelas lojas, em uma tarde durante a semana, ali havia algumas agências bancárias, comércios de todos os tipos, como sempre eu estava apressada, olhando para o relógio, distraída, pensando na lista de coisas para fazer ao longo do dia de trabalho, andando pela calçada, sem prestar atenção às fachadas, quando senti um cheiro delicioso de massa de bolo assando.
Parei surpresa e curiosa. Aterrei no momento presente. Fiquei procurando se havia alguma residência na região e percebi que aquele perfume delicioso vinha de um ponto comercial, uma loja estreitinha. Andei até lá.
Fui fisgada por aquele aroma.
Aquele cheiro tinha sabor de brincadeira à tarde em casa, de cachorro aprontando no quintal, uma sensação de infância com mãe e avó em casa, um tempo colorido, onde o meu único compromisso era frequentar a escola e tirar notas boas ou pelo menos a média exigida, recordações de uma época doce da minha vida que havia passado.
A placa na fachada fazia referência a bolo caseiro de avó, ou algo assim , na pequena vitrine estavam bolos de variadas cores e tamanhos, reconheci o de chocolate e um mesclado, que em casa era chamado de Formigueiro, bolo esse que eu nunca mais havia comido, pareciam quentes, recém tirados do forno. Era o mesmo cheiro da minha infância, mas dessa vez não vinha do forno de uma casa, onde havia barulho de crianças por perto e cachorro latindo.
Era uma novidade para mim que existisse um lugar daquele, na época lojas desse tipo ainda estavam ganhando espaço, e eu fiquei paralisada olhando para o movimento, vendo o vendedor uniformizado atender um cliente, aquele cheiro fez algo em mim vibrar, era uma sensação diferente. É estranho e interessante que bolo para café, sem recheio ou cobertura, tenha se transformado em um produto para ser vendido em loja, com embalagem, etiqueta e logotipo.
Emocionada, senti meu coração começar a bater mais forte e meus olhos ficarem marejados.
Não costumava durante o dia de trabalho ter momentos de reflexão, minha vida girava em torno de cumprir horários, agir como adulta, parecer formal, ter metas. Ouvia falar que meditar faz muito bem e que precisamos tirar pelo menos alguns minutos do dia para nós mesmos. Achava que fazer muita coisa era sinal de produtividade, vida bem aproveitada, com a agenda cheia sempre tentando encaixar mais uma atividade, nunca um tempo livre.
Eu não costumava ficar introspectiva. Tinha sido treinada para "dar conta", ser "multitarefas" e nunca questionei se a vida deveria ter outro rumo. Não parava para pensar, pois tinha muita coisa para fazer.
Lágrimas quentes começaram a escorrer e molhar minha camisa social. Meus olhos vazavam sem minha permissão. Eu usava óculos escuros.
Eu me considerava tão racional, focada, séria.
Me contaram que ser adulta é saber o que se quer, ter objetivos, traçar metas, pagar contas, fazer escolhas, conquistar coisas, comprar objetos.
Passou pela minha cabeça ...E se alguém conhecido me visse chorando pela rua naquele momento ? Eu sentiria vergonha ?
A emoção foi tomando conta de mim, eu fiquei com o rosto vermelho e molhado, sentindo minha presença ali na rua.
Nessa hora entendi que posso ficar emocionada, que não havia problema caso eu encontrasse alguém conhecido por ali, tirei meu óculos de sol, um modelo largo que tampava meu rosto, senti as lágrimas desciam grossas.
Seriam aquela roupa os acessórios, os sapatos que eu estava usando seriam um tipo de armadura social?
Eu sabia que era uma exigência do mercado de trabalho para transparecer seriedade, compromisso.
Me dei conta que era importante não bloquear o que eu estava sentindo. Eu havia chorado dias atrás vendo um filme que eu sabia tinha cenas tristes, mas aquele choro inesperado provocado pelo olfato tinha outra dimensão e muito mais intensidade.
Eu seguia parada em um canto da calçada, estática e pulsante, recordando as delícias do cafés da tarde, a maciez dos bolinhos de chuva, como eu adorava raspar com uma colher a deliciosa massa da fôrma de bolo antes de ser lavada, como eu costumava brincar com as amigas da minha idade e que moravam perto de mim, era sorridente, inventiva, um tempo inesquecível onde eu escutava a voz da minha mãe na cozinha, tinha minha avó por perto, fazia mil planos na minha cabeça , adorava ler histórias e imaginar viagens.
Sentindo delicadas ondas de emoção subindo do meu umbigo em direção à minha garganta eu chorava como quem transbordava, nostálgica, me sentindo leve e ao mesmo tempo cheia de vida.
Uma fagulha daquela menina criativa e intensa ainda morava dentro de mim e dar espaço para ela aparecer era avassalador, era um presente, como ter uma chance de me redescobrir.