Memórias de um Vegetariano (2)
O PERU
Continuo hoje a contar a saga de como me tornei um vegetariano. Primeiro, foi a vaca que ficou brava comigo porque eu estava comendo seu filho. Cena grotesca, porém inesquecível. Nem terminei aquele que seria o último bife de minha vida.
Minha segunda experiência, ainda em tenra idade, foi com carne de aves. Ou mais especificamente com um peru.
Morava na roça, com meus avós, e sempre presenciava o abate de frangos e outras aves. Confesso que sempre ficava abatido com a cena, imaginando que uma vida tinha sido ceifada e que aquelas vísceras eram colocadas porcamente em um balde velho e sujo, com o sangue escorrendo nas laterais. Achava aquilo bizarro. Depois, vinha aquela ave toda adornada em um prato no almoço de domingo. Comia, mas ficava com borboletas no estômago. Ou melhor, com um frango nas entranhas...
Algum tempo depois do episódio da vaca já relatado , participava de uma refeição de Natal, com o peru assado ocupando o centro da mesa. Minha avó fazia uma farofa maravilhosa, e eu comia a ave temperada, feita com aquele carinho e muito, muito capricho.
Eu sei, peru não é frango, mas são parentes próximos, acho que primos.
O peru entrou gloriosamente, com uma verdadeira procissão levando o prato para a mesa. Parecia o enterro de um presidente. Eu havia esperado ansiosamente por aquele momento, parecia que tudo aquilo era a concretização do Natal.
Mas quando espetei o garfo na suculenta ave, percebi um peru entrando pela porta. Sim, um peru vivo, real, com penas e papo, pescoço e cabeça vermelhos. Parou rente ao umbral, altivo, elegante, entoou um glu-glu-glu inicial para chamar a minha atenção. Acho que não poderia esperar outra coisa de um peru. Pela pose, devia ter complexo de cisne.
Olhou para mim, com firmeza, e foi me dizendo: - "Você está comendo a minha mãe". Meio sem jeito, perguntei para ele: - "mas a senhora sua mãe é uma perua?". Ele não apreciou o comentário, e respondeu com um sonoro -"o que é que você queria? que fosse uma codorna?". – Não fui feliz, pensei. Deixa eu ficar quieto e continuar comendo.
Continuei comendo, enquanto o peru, na porta da cozinha, olhava para mim, com ar de desaprovação.
No dia seguinte, almoço já-te-vi, e lá estavam novamente os restos mortais do peru (assado). Peguei um pedaço com a mão (coisa que minha avó não gostava), comecei a mastigar, e novamente ouvi o glu-glu-glu. Dessa vez, mais sonoro, mas também mais dramático...triste, eu diria...
Era ele, o peru, no mesmo lugar, balançando a cabeça em sinal de desaprovação. Fiquei com vergonha. Fiquei mais vermelho do que um peru. Larguei o pedaço que estava comendo, sob os protestos da minha avó, e ataquei a batata. Nunca mais na vida comi um penoso, refeição muito comum na fazenda onde a gente morava, nas imediações de Morungaba.
Aboli de minha dieta a carne de ave, pois eu me lembrava do peru, vermelho de raiva e ao mesmo tempo triste, fazendo glu-glu-glu para mim. Quando tinha peru em casa, eu não comia, mas sempre olhava de soslaio para a porta para ver se ele, sim o peru, não estaria por lá. Nunca mais voltou. Não precisou. Eu nunca mais comi carne de ave.
(*) Julio Arthur Marques Nepomuceno sou eu