Recordações sobre a infância 001
Como criança da década de 90, levando em consideração o recorte regional e financeiro em que minha família se encontrava, tive minha sociabilidade mediada pela televisão e pela alimentação. Ambos funcionavam como formas de fugir da condição angustiante de ter que aprender a viver e conviver com a realidade que se apresentava. Me permitindo estar sempre inebriado com a satisfação garantida frente ao tédio ou caoticidade infanto juvenil.
Apesar de domesticado, recordo momentos em que o exercício da angústia esborrava inevitavelmente e eu me via de encontro ao real. A escola me trazia esse estalo, sempre problematizei e busquei silenciosamente responder as perguntas que eu me fazia. Havia uma compreensão de demandas complexas, reflexões e sofrimentos por causas éticas incomuns para idade que eu nunca compartilhei.
Por exemplo: a dicotomia entre bem e o mal até então gestada pela criação cristã por muitas vezes foi colocada em cheque e apesar de querer ser uma pessoa boa, evitar sofrimento e voltar a inércia prazerosa de uma vida sossegada, eu sabia que as pessoas más não eram simplesmente más, assim como sabia que eu como tentativa de pessoa boa também não era simplesmente bom.
A vivência de dilemas morais não paralisavam, mas faziam com que eu retornasse à posição de auto alienação. Recordo com muita vividez quando me ofereceram a matrícula em um curso de computação para adultos, algo extremamente inovador e complexo pra época, eu me julguei incapaz de conseguir lidar com aquilo, eu refleti sobre a complexidade da demanda, me comparei com os possíveis demais integrantes e o medo de não conseguir superou a curiosidade de conhecer, eu desisti antes mesmo de tentar.
Trazer esse episódio me remete também à sensação de insegurança infantil frente o mundo e a ausência de ambos os pais como figuras de responsabilidade afetiva e social, muitas vezes eu julgava que eles entendiam menos do que eu e talvez eu estivesse certo.
Silenciado, eu nunca falei sobre isso, nunca cobrei a presença ou o incentivo, sempre me senti um figurante naquela história, que tinha como tema do roteiro principal a dinâmica abusiva do relacionamento de meus pais. Minhas angústias não tinham vez, meus medos não tinham vez e eu como bom garoto, ou pelo menos tentando me aproximar do ideal de bondade que o mundo preconizava, voltava a comer doce e ver televisão para abafar o impacto do sofrimento de existir em mim.