O Kichute ajudava a encher lajes aos domingos.
Falar de um calçado tão marcante como Kichute é, acredito, revirar as memórias e reencontrar dentro de mim um traço da ingenuidade perdida ao longo dos anos. A minha relação, na infância, com Kichute se confunde com a própria infância. Como bom paulistano que sou, poderia resumir minha experiência com o calçado em uma frase: “O Kichute era DA HORA! Acho que contemporâneos meus compartilham desse sentimento... E vou dizer, na real, nem era tudo isso.
Mas, era equivalente a ganhar uma bola. Lembro que tinha outra utilidade, além de parte integrante indispensável ao uniforme futebolístico: servia como ótimo EPI (Equipamentos de Proteção Individual) na hora de a gente, criança, ajudar a encher lajes aos domingos. Sim, não parecia perigoso ainda era divertido. No final rolava uma Tubaína. Que delícia!
Então, naquele tempo, início dos anos 80, antes das grandes marcas esportivas invadirem o Brasil e se popularizarem, o maior nome no mercado, para quem praticava o bom e velho futebol nos campinhos de bairro, abertos em terrenos baldios da periferia, era o Kichute. Nasci no extremo norte de São Paulo, no bairro do Jardim Brasil. Aos dois anos de idade, fui morar com a família em Embu das Artes, na região metropolitana da capital, onde vive até hoje.
Na rua, que era uma longa ladeira, havia uma certa rivalidade entre os garotos da parte baixa e os garotos da parte alta, na qual eu me incluía. E essa rivalidade era constantemente medida em “contras”, hoje chamam isso de “rachão”, eu acho. Era como chamávamos as partidas realizadas ali mesmo, na parte alta da rua. No meio da rua.
A vizinhança ficava louca com a bola caindo no quintal deles e toda hora, invadindo e quebrando garrafas do bar, que se posicionava, equivocadamente, em paralelo ao campo de jogo, no caso, a rua. Bom, a rua não era asfaltada e não havia muitas casas. Era possível ocupar os terrenos e desenvolver ali mesmo um campinho.
A gente se reunia em mutirão para desmatar, limpar, demarcar, construir as traves com caibros de construção (os que sobravam das escolas de laje). E era legal porque, nessa hora, os rivais se reuniam para o bem comum: o desafio do contra. Tinha até ranking informal dos maiores goleadores e craques. Se tivesse disputa da bola de ouro, modestamente, talvez pudesse ganhar uma de bronze.
Não era incomum eu chegar em casa com a ponta do dedão do pé esfolada por chutar uma pedra ou outra coisa. Nessas horas, eu só faltava implorar por um tênis para jogar bola. Mas tinha que ser Kichute. Porque era como uma chuteira mesmo. A gente se sentia profissional. Com aquelas “travas”, a gente ficava mais alto e imponente. Aquele cadarço enorme só podia ser cruzado na canela e amarrado como verdadeiro Gladiador. Assim estava pronto para a batalha.
Esse é um sentimento ingênuo que não se vê mais. Fato é que o Kichute faz parte da minha infância, marcou a geração e era diferente. Uma pena não ter nenhum registro fotográfico com aquele que se tornaria uma lenda. Não lembro quando usei a primeira vez, mas lembro que tive vários e marquei um monte de gols. Ainda bem!
Willian Lima “Pessoa”
Texto originalmente publicado na antologia “Quando éramos iguais: memórias de uma geração que usou Kichute” - Organizada por Gonçalo Junior, Editora Noir, 2022 - Copyright. Todos os direitos reservados.