The shadow of your smile

     Dito e feito: Zezé Patesko propôs e achou quem encarasse o desafio de criar um jazz-band e tocar por partitura. José Maria "Tavico", José Marcos Cançado e Miguel Rachid eram os músicos. Esses já ganhavam a vida tocando de ouvido em Pitangui e região. Valia tudo: formaturas,15 anos, barraquinhas, carnaval, o que viesse eles encaravam. Todos no esplendor dos 16 a 20 anos, quase "de maior". Entre eles, estava eu. Também queria adentrar o reino encantado da música. Nele, além de fadas e duendes, havia o principal: meninas. Isso embalava nossos sonhos juvenis.

     Patesko, apelido de José Nunes de Oliveira, era um nome consagrado na música de Minas Gerais. Escrevi uma crônica sobre ele neste Recanto, por nome "Casamento no Uruguai". Patesko vivia entre Pitangui e Belo Horizonte, tinha discos gravados e programas nas emissoras de rádio da capital. Ninguém melhor do que ele para criar o jazz-band e ensinar aqueles rapazes a tocar por música.

     Dentre seus futuros comandados, eu era o único que não tinha experiência com instrumentos nem com público. Gostava de cantar música italiana no banheiro, mas sonhava secretamente exibir-me no palco do Cine Pitangui, onde, uma vez por semana, faziam "cover" do programa de tevê, o Jovem Guarda. Na lista de meus futuros sucessos destacavam-se "Io che amo Solo te" e "Io che non vivo senza te", pura sofrência italiana.

     As aulas começaram. Meu pai comprou uma cota e eu escollhi o sax. As aulas noturnas eram no Pitangui Clube, às vezes no Museu Histórico ou num cômodo do professor Newton Braga. Minha primeira missão era achar a famosa "embocadura" do sax. Logo, porém, o pescoço começou a engrossar e não saía som algum. Patesko dizia: William, a embocadura, é preciso achar a embocadura...

     Eu conhecia a desembocadura dos rios da aula de Geografia de D. Nazaré Lemos...  Já a embocadura do saxofone... De papo inchado, pescoço engrossando e dolorido, reneguei o sax e passei pra bateria. Eu vacilava, porém. Combinar pedal e baqueta não estava sendo fácil. Zé Marcos Cançado, o Zezé do Nelito, tinha experiência e assumiu e passou a comandar o ritmo do jazz-band

     Finalmente, fiquei com o contrabaixo. Era minha última chance. Comecei a tomar gosto pelo instrumento e a ler partitura. A primeira música a ser ensaiada foi "The Shadow of Your Smile", de Johnny Mandel e Paul Francis, do filme "The Sandpiper". Aí eu conseguia ler a a partitura e acompanhar o compasso.  Eu adorava tocar aquela música, já começava a sentir os acordes, era um sonho se fazendo realidade. A primeira sequência de cifras simples - re menor, lá maior, mi maior e, a apoteose na volta do re menor - onde eu já podia até fazer uma careta de entendido para o trecho "when you were gone"... Era o Paraíso na Terra!

     Meu sonho terminou abruptamente. Nossos músicos, apressados a tocar profissionalmente e a se mudar para Belo Horizonte, abandonaram o barco do jazz-band. Ficamos eu, o contrabaixo e o Patesko. Já sem utilidade, papai vendeu o contrabaixo, comprado a prestação. A solução era o vestibular de Letras e a mudança também para Belo Horizonte.       

     Volta e meia, recupero o sonho perdido e executo o contrabaixo em um auditório nas nuvens. A multidão, mesmerizada, aplaude o músico de uma música só: "The Shadow of Your Smile". 

 

 

Nota de agradecimento: Muito obrigado ao amigo, conterrâneo e contemporâneo, Miguel Rachid, integrante do jazz-band, que me ajudou a recordar parte dessa narrativa.