HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 2

DEU NA RÁDIO!

Quando servia na Embaixada do Brasil em Luanda, marquei visita de trabalho bem cedo a um funcionário da área de Portos. Despertei com boa antecedência para tal encontro e logo escutei sons que pareciam fogos de artifício. Sabendo da inexistência de evento festivo naquela data, muito menos quando o dia ainda raiava, logo percebi que se tratava de tiros de verdade. A julgar pela direção dos estampidos, considerei que ocorria nova iniciativa de fuga no principal presídio da capital angolana, similar à que se registrara na semana anterior.

Antes de sair, vi pela janela do quarto haver viaturas e soldados das Forças Armadas na via que levava ao bairro de Miramar, sede da Embaixada e de outras missões diplomáticas. Decerto buscavam fugitivos da prisão, pensei comigo.

Ao chegar ao local da reunião, surpreendi-me em encontrar todas as portas fechadas. Preparei-me para o provável atraso de meu interlocutor e, após prolongada espera, sem que ele ou alguém mais aparecesse, retirei-me para meu compromisso seguinte, uma visita de cortesia ao conselheiro da Embaixada da então Tchecoeslováquia.

Passei por um soldado de fuzil em punho, mas sorridente, que controlava o acesso ao Miramar e expliquei que era diplomata brasileiro, a caminho do escritório. Ele continuou a sorrir e fez sinal de que passasse enquanto eu refletia como era bom encontrar agentes de segurança assim afáveis (o que nem sempre constitui a regra, em Luanda ou em qualquer outra parte do mundo).

Enquanto conversava animadamente com meu colega tcheco, chamou-nos a atenção o que no momento transmitia a rádio oficial (única existente). O tom e o teor das palavras fugiam estranhamente à rotina verbal a que estávamos acostumados. De pronto nos demos conta de que a estação se encontrava nas mãos de movimento rebelde empenhado na derrubada do governo. Saí às carreiras para a Embaixada brasileira, onde ainda tive tempo de datilografar e enviar um telegrama oficial, ditado pelo embaixador, comunicando a insurreição em curso. Pouco depois, as comunicações telegráficas foram interrompidas, só sendo retomadas quando a tentativa de golpe de Estado foi debelada. Pela rádio, ainda foi possível ouvir os gritos e ruídos da batalha corporal que recuperou a estação novamente para o governo.

Jamais poderia imaginar tão insólita transmissão radiofônica nesse inusitado e inesquecível episódio do meu primeiro posto no exterior.

ANIVERSÁRIOS POUCO MEMORÁVEIS

Pode soar estranho, mas sempre fui do tipo que prefere comemorar o aniversário de parentes e amigos ao seu próprio natalício. Sinceramente, nunca dei maior importância ao meu dia de nascimento, embora nem por isso eu quisesse que a data viesse a tornar-se pouco memorável, como ocorreu em duas ocasiões quando servia no exterior.

Em Washington, meu aniversário coincidiu com um seminário na sede da Organização dos Estados Americanos, o qual fui escalado para acompanhar. Findo o evento, dei uma passada no escritório de nossa Missão, para entregar o relatório ao telegrafista, e este informou-me da chegada de comunicação do Ministério sobre minha remoção para outro posto. Soube assim estar removido para a Embaixada em Moscou, o que em princípio me agradou. Só que depois o médico norte-americano de minha esposa desaconselhou-nos seriamente a ir para lá por motivos de saúde que não faz falta explicar aqui. Ciente de que a ida para a URSS consistira em autêntico “presente de grego” pelo meu aniversário, vi-me obrigado a travar longa e difícil “negociação diplomática” com o próprio Ministério para alterar a remoção. Felizmente, contei com a compreensão da cúpula da Casa (como chamamos o MRE) e assegurei a volta para Brasília.

Em Assunção, passados uns três meses da chegada ao posto, fui “agraciado”, em meu natalício, com a detenção de vários torcedores de um clube de futebol brasileiro envolvidos em briga com seus “pares” do time paraguaio rival. Passei o aniversário, bem como o fim-de-semana subsequente, entre telefonemas e comunicações telegráficas, visita aos detidos em prisão local e seguidas reuniões com advogados e autoridades responsáveis. Em vez de comemorar mais um ano de vida, só fui celebrar, dias depois, a liberação dos torcedores mediante o pagamento de multas e o cumprimento de outras exigências legais.

NEVE AGAIN – episódio I

Existe uma imagem idílica da neve que cobre campos, árvores e montanhas com a pureza de sua cor branca. Não resta dúvida da beleza de tais paisagens.

Por outro lado, há uma realidade triste dessa mesma neve no ambiente urbano, onde logo se mistura ao óleo e à sujeira reinantes, formando uma lama horrenda que causa dissabores não só aos olhos, ante tamanha imundice, mas também aos pés, que nela chafurdam e não raro escorregam, ameaçando o transeunte de levar um tombo, doloroso e emporcalhado.

A constante retirada da neve da frente de residências e garagens constitui outra desventura proporcionada pela branquinha. Certamente não faltarão histórias a esse respeito (aguardem os próximos episódios).

O tema de hoje consiste, porém, no transtorno enfrentado certa vez na volta do escritório, em Washington, DC, para minha residência em Chevy Chase. A distância era de cerca de dez quilômetros, o que significava deslocamentos que tomavam em torno de quinze minutos, em geral.

No final daquela tarde inesquecível, começou a nevar e, da janela da minha sala de trabalho, observei que o tráfego já dava sinais de congestionamento no caminho usualmente utilizado. Se na maioria das cidades, se não em todas, a chuva dificulta o trânsito cotidiano, imagine-se o que pode fazer a neve.

Avisei minha esposa de que ficaria no escritório até as oito da noite para ver se escapava do movimento intenso. Ainda tive a precaução, ao sair, de buscar uma via alternativa que me permitisse acesso possivelmente mais fácil a partir de Georgetown.

Essa via escolhida conduziu-me em dois tempos à rua M, na citada área da capital norte-americana, mas ali começaram as atribulações do engarrafamento (monumental como a cidade). Em um dos cruzamentos, durante uma hora contada no relógio, assisti ao abrir e fechar do sinal de trânsito sem avançar um centímetro. Na época, final dos anos 70, ainda predominavam os enormes automóveis de tração traseira e de câmbio automático do sonho americano. Convertidos em pesadelo, uma vez que patinavam na neve e não saíam do lugar.

Quando finalmente pude ultrapassar o cruzamento, tratei de tomar uma rua secundária no intuito de escapar àquele caos automobilístico. Meu carrinho japonês, de câmbio manual e tração dianteira, conseguia superar as barreiras naturais da neve acumulada. Onde não encontrávamos as barreiras artificiais dos carrões “made in USA”, avançávamos intrepidamente.

Para resumir a ópera, cheguei à casa quase à meia-noite, para reencontrar minha querida e preocupada esposa, aflita com a demora. Sem celulares na ocasião, não havia como atualizá-la sobre meu percurso. Quatro horas para cobrir trajeto de meros quinze minutos! Dá para entender por que nunca hei de declarar amor à traidora neve.

Brasília, dezembro 2023/abril 2024.