🌺72🌺 - A HISTÓRIA DO DEFUNTO
Aos meus 6 anos “bem vividos”, não era permitido ir a funerais.
- Eu vô mãe?
- Criança não fica perto da dor, só dos sorrisos. Vá brincar.
Mas, o que seria virar um defunto?! Qual a cor? Era uma preocupação que me atormentava. Nesta época eu morava em Ruy Barbosa, pequena cidade rural do interior da Bahia, onde o dia de morte era dia de “festa” ao meu olhar. O meu pai e a minha mãe ficavam de roupas elegantes. A cidade agitada. Sussurros eram ouvidos pelas esquinas. Abraços de mãos batidas nas costas, pessoas com flores nas mãos.
Igual à procissão da igreja, todos seguiam ao cemitério formando um irrequieto manto negro pela rua. Atrás, acompanhava a fila de carros dos mais ricos. E o carro funeral? Ah! Uma belezura. Sempre na frente, era grande, preto, janelas largas com lindas cortinas da cor das berinjelas e no teto um jardim florido. Por vezes esse cortejo passava por minha rua e eu ficava deslumbrada. Ainda veria um “defunto”. Era uma grande vontade.
E eis que um dia o pai de minha coleguinha resolve morrer. As crianças foram dispensadas da aula. "Não preciso esperar a bá professora. Vô prá casa sozinha. Sei ir". E lá fui eu feliz! Cidade pequena onde todos se conhecem. Não há riscos. Contudo, desviei-me do caminho de casa e foi animada em direção à casa da minha amiguinha para ver o “defunto”. Era um conhecido, era o pai de Aninha que virou “defunto”. Porta aberta entro na casa. Surpresa, encontro a amiga triste, toda de preto. Não há risos e não há festa. A casa escurecida com janelas semiabertas.
A mãe de Aninha manda que nos sentemos. Mas... e o "defunto"?! Fico ansiosa. No meio da sala sobre uma mesa, entre velas fumegantes, guardado em uma enorme e linda caixa de madeira com enfeites dourados, percebo que estava ele lá. Contudo, não conseguia ver. Era muito alta a mesa e havia pessoas rezando ao redor. Fico desanimada.
- Fiquem quietas que o fotógrafo chegou. Ana, dê bolo à sua amiguinha”, diz a mãe assoando o nariz vermelho e já inchado de tanto chorar. E eu admirada... Tem bolo mas não tem festa. Começa a função do fotógrafo. Conserta o morto aqui... e acolá... Retrata de um lado e do outro.... Põe e tira flores... Torna a retratar (a fotografia de um familiar importante falecido era tradição local ocupar um lugar eterno na parede da sala). E eu ali... Tensa... Espantada... Surpreendida porque não havia festa, porque não via o “defunto”. Sinto-me enjoada com os cheiros que nem sei do que. Velas, fumaça, flores, o próprio odor da morte e do sofrimento. Tristeza tem cheiro que aperta o nariz e dói a garganta. Não consigo comer o bolo. Não consigo saber o que seja um “defunto”. Fico cansada e desolada.
De repente o fotógrafo chama a nós duas, para tirarmos um retrato beijando saudosamente o pai de Aninha. “Subam na escadinha meninas e beijem a testa”, diz o fotógrafo, pensando sermos duas irmãs. Éramos muito parecidas. Aninha puxa meu braço, “vem cá”. E lá se fui eu, ansiosa, apertando forte a minha merendeira a tira-colo e curiosa. Conseguiria ou não, afinal, olhar um “defunto”?! Não sabia o que fosse a morte. Virar "defunto", com certeza era uma mágica colorida. Já conhecia das borboletas e do arco-íris.
Tensa, subo o degrau e me deparo, espantada, com a cara do pai de Aninha. Inchada, amarela, uma fita prendendo o queixo até a cabeça, nacos de algodão enfiados no nariz, que nem uma assombração. Fujo de lá correndo, branca como as velas que ardiam, atordoada com o ambiente depressivo que nunca havia vivido, apavorada com a imagem do “defunto”. Submergida pela feiura da morte, em disparada corro chorosa para a minha casa. No caminho encontro o meu pai conversando com um amigo. Aliviada agarro-me a esta proteção. Atônito com a presença da filha pálida, em lágrimas, sozinha na rua, guarda-me em seus braços e vira-se ao amigo para se despedir e neste momento é que começa o drama maior...
Abraçada desesperadamente ao meu pai, encolhendo-me do contato da mão do tal amigo que vinha enorme e carinhosa em minha direção, grito e choro apavoradamente, repetindo sem parar, aos berros: ”valha-me Deus!...Valha-me Deus!... Valha-me Deus!” (como ouvia dos trabalhadores da minha casa).
O amigo aproxima-se mais ainda e acaricia meus cabelos na tentativa de ajudar a acalmar essa criança tresloucada e, aí, o mal fica ainda pior... Começo a berrar descontroladamente: o “defunto”! O “defunto” veio me pegar! O “defunto” veio me pegar!
Compreenderam. O amigo do meu pai era, justamente, o irmão gêmeo idêntico, do pai de Aninha, o coitado do tal "defunto".
OBS: um acontecimento verídico da minha infância.