EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE (LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (I)
EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE
(LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (I)
EU TENTO incansavelmente vestir a roupa de meu juízo perfeito. Não que isto seja possível, mas gosto de acreditar que dele me aproximo mais que possa. Ir garimpando a natureza escatológica da realidade, sem que use obscenidades para me expressar nesse momento de fim de mundo. Busco as últimas coisas depois da extinção de minha própria vida.
TAL QUAL afirma uma querida parceira de comentários neste Recanto, diante de mim enquanto meu paciente, frente a frente com minha própria crueldade e ignorância, diante de minha descoberta de mim mesmo, não cabem interpretações, conceitos, teorias. O modelo de minha mente não segue os padrões de outros modelos, de outras mentes. Cada história de vida possui seu traumatismo particular. Não é fácil olhar e analisar as próprias facetas.
“O FARDO do autoconhecimento é pesado”. Um lugar de fala e de assimilação por si só é saudável para se desatar “os nós” e desamarrar os sentimentos. Eu tinha em mim a angústia de abismos que não eram meus. A parceria abissal de uma mãe com mil traumas, a carregar consigo o baú de muitas misérias ancestrais. E também de uma vida seca e de abuso sexual.
EU TINHA em mim tártaros, vexames, vergonhas, desordens que não eram minhas. Um pai que se tornava cada dia mais impotente no convívio com uma mulher mais e mais carente, que ele não poderia dá conta de satisfazer na cama de excessivas humilhações. O cansaço e o cangaço de um filho atrás do outro. De uma prenhez incessante, de uma barrigada ou afetação que se divertia em ficar, amiúde, grávida. Jogando-lhe nos ombros uma e outra cruz para sustentar com uma estafa que não mais cabia em seu cansaço diário e mórbido calvário.
O CANSAÇO o tornava vítima de uma regressividade de homem a moleque. Eu colecionava também os abismos dos irmãos: as angústias de suas vidas secas no deserto metafórico, existencial, descrito por Graciliano Ramos. A mulher, muitas vezes mãe, era uma baleia. Não no sentido da cadela do romance. No sentido do animal oceânico, imenso, com uma disposição para ingerir grandes quantidades de alimentos.
MINHA EXISTÊNCIA não tinha nenhuma mínima importância para ela. Exceto no sentido de que ela exercitava em mim, uma perversidade abissal, ancestral. A mãe dela havia criado um sujeito humilhado e sem expectativas. Um tio Zé Mané. Se minha intuição está correta, a minha bisavó também criou seu retardado de coleira e de estimação. Talvez fosse uma rotina sacrificial de família. Ela tinha em mim, a dominação ancestral que teria o padrão: “assim minha mãe me ensinou”.
AO ME tornar um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes, tal qual afirmava a música e letra do cantor Belchior, eu teria de criar, aceitar e respeitar minha própria depressão. Eu teria de encarar o medo do abismo familiar sem ter medo de enfrentar e vencer a perversa exclusão. O marido dela, fraco e trêmulo, era a cachorra familiar, a baleia do romance de Graciliano Ramos.
ERA TRISTE ver como aquela mulher, mãe de uma família de dez sobreviventes, se orgulhava na ignorância de dizer que, fosse por escolha dela, ela teria criado os vinte e cinco abortos, caso estivessem todos vivos. Ela não via, ou melhor, via, mas não se importava com a difícil vida que me reservava na adolescência. Ela fazia de conta não vê o abismo que abria diante de meus passos de jovem em busca de apoio financeiro para suprir as necessidades decorrentes do crescimento e estudos.
MEU TEMPO estava sendo roubado por sua perversa teimosia em ter um filho atrás do outro. Mas ela dizia que foi assim que aprendeu a criar os filhos com a mãe, minha avó. Ela roubava meu tempo de juventude antecipadamente. Eu enxergava nitidamente o que ela estava a fazer. Mas ela tinha um grande prazer em boicotar minha existência. Seus abismos ela queria porque queria, que fossem também meus. Se a família dela fodeu com as possibilidades dela, por que ela não poderia fazer o mesmo comigo??? Era uma espécie de transferência de vingança de uma morbidez incrível.
DESCOBRI O existencialismo, com ele, seus autores, Sartre e Kierkegaard, principalmente. Incluí minha mundanidade, minha angústia, minha sobrevivência difícil, diária, sem permitir que minha subjetividade fosse engolfada na perversidade e na fraqueza perversa dela e do marido de coleira. Um sujeito dependente de não poucas drogas, inclusive as do consultório dentário. O sujeito era dentista.
PARA OS existencialistas a vida se elabora e é ordenada no absurdo, na angústia e na náusea da existência. Para mim, o existencialismo funcionava como compreensão de mim mesmo. Era uma psicanálise. Descobrir-me, a partir da psicanálise e do existencialismo foi, e ainda é, um exercício mental doloroso. Ambos me permitiram trans ferir minha raiva e revolta para a apreciação das artes.
EU ME permitia ser um sujeito sobrevivente de empregos em empregos. Um outsider que usava do tempo útil que me sobrava para apreciar e compreender a arte das artes plásticas, da dramaturgia, do cinema, da música. Não me faltava energia PSI para frequentar museus, teatros, cinema, recitais, saraus, concertos. E ler. Ler muitos, muitos livros. O conhecimento, acreditava, talvez fosse um portal para universos inexplorados da mente. Dona Maria Joana me auxiliou, e muito, nesse processo de abrir as portas de minha percepção ampliada do mundo.