HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 1

PEDIDO DE ASILO EM ANGOLA

Em Luanda, entre 1976 e 1977, vivi minha primeira missão como diplomata residente em um país. Embora tecnicamente considerada como temporária, quinze meses praticamente equivalem a uma autêntica remoção, o que propiciou experiência longa e proveitosa, inclusive em matéria de peripécias.

Certo dia, o recepcionista angolano da Embaixada veio dizer-me que “camarada” de seu país queria solicitar asilo no Brasil (todos se tratavam como camaradas, conforme os credos marxistas então vigentes).

Gelei de imediato! Se fosse mesmo caso para a concessão do asilo, poderíamos enfrentar problemas com o governo angolano, já que alguns de seus membros mais radicais encaravam o regime militar de direita brasileiro com elevada dose de desconfiança e de má-vontade. Instruí o servidor local a conduzir o solicitante à salinha do Setor Consular, onde eu o aguardaria para a necessária entrevista.

Quando o “camarada” chegou, surpreendeu-me ainda mais por seus trajes sujos e maltrapilhos. Convidei-o, de toda forma, a sentar-se e a explicar o motivo pelo qual desejava asilar-se no Brasil. Tropeçando nas palavras e revelando estado de indigência igualmente mental, o pobre cidadão queixou-se de que tanto seus familiares quanto os amigos não gostavam dele.

Diante da insólita situação, restou-me trocar minha cartilha diplomática pela de ex-aluno de educandários católicos para assumir o papel de padre e aconselhar o requerente a não abandonar seu país, a ter mais paciência com parentes e amigos, a acreditar num mundo melhor. Consegui, para meu alívio, convencer meu interlocutor, que acompanhei de volta até a saída da Embaixada.

Senti-me um verdadeiro santo, mas não a ponto de deixar de repreender o recepcionista por haver-se deixado engabelar por um pedido sem fundamento e criado o risco de desdobramento mais sério pelo ingresso do indivíduo no recinto.

MENINO NAS ALTURAS E À ALTURA DE LA PAZ

Na primeira de minhas duas visitas à simpática cidade de La Paz, em 1975, passei por experiência bem gratificante, além de inesperada. Aproveitando intervalo na longa programação oficial, saí do hotel para dirigir-me a uma loja próxima, no intuito de comprar algumas lembranças para mim, parentes e amigos.

Mal cheguei à rua, fui abordado por menino boliviano, que vendia peças artesanais de xadrez. Eram peças bastante toscas, de barro, as quais me deram a impressão de serem confeccionadas pelo próprio vendedor ou por sua família. Interessei-me logo pelo artigo, pois eu acreditava, na época, que ainda viria a tornar-me exímio mestre nesse jogo (o que jamais ocorreu, pois nunca fui além de mover o pião do rei duas casas e protegê-lo imediatamente com o cavalo da dama).

Perguntei o preço ao menino e, num gesto de generosidade digno de bom samaritano - talvez inebriado pelos ares rarefeitos da elevadíssima capital boliviana -, paguei ao vendedor mais do que ele me pedira. O sorriso do garoto espelhava sua felicidade com o bom negócio.

Resolvi deixar as pedrinhas no hotel para depois retomar o caminho da loja. Ao voltar a sair, o menino aproximou-se de mim e, estendendo-me um cordão, disse, sorridente: “señor, un regalo para usted”. O cordão tinha outra peça de barro de xadrez como pingente. Agradeci vivamente e continuei meu caminho.

Muito do que vi em La Paz certamente se foi da minha memória. O amável gesto do pequeno vendedor constitui algo inesquecível, porém. Gentileza à altura da extrema altitude da cidade. Resta-me torcer para que o destino haja sido igualmente generoso com criatura tão gentil.

OS DESCANSADOS

Em três dos sete países onde tive oportunidade de servir como diplomata residente, encontrei um curioso traço comum. Todos possuem mote bem popular, que seus nacionais empregam a bel-prazer nas mais variadas situações.

Na Bélgica, o mote é “ce n’est pas grave”, o que significa que o caso não seria assim tão sério. No Uruguai, usa-se a expressão “no pasa nada” com praticamente o mesmo significado (não há problema). Já na Costa Rica, “pura vida” constitui a palavra de ordem. Embora de alcance mais amplo e variado do que seu similar nos dois outros países, o lema também serve para minimizar quaisquer dificuldades que surjam.

Como boa parte dos motes do gênero, os três prestavam-se ao mau uso por parte de cidadãos demasiado descansados, especialmente prestadores de serviços que não compareciam no dia e hora marcados com o cliente e ouviam reclamações a esse respeito sem dar a mínima. Limitavam-se a dizer “ce n’est pas grave”, “no pasa nada” ou “pura vida” como se fosse a mais inquestionável das justificativas.

Nem adiantava exasperar-se! Restava ao cliente que solicitou o serviço marcar outra data e contar com a boa vontade do profissional pelo menos uma vez na vida.

Com todas as diferenças culturais e sociais que os distinguem, belgas, uruguaios e costarriquenhos possuem algo em comum, portanto. Claro que qualquer coincidência nesse sentido com os brasileiros é mera semelhança. Ou será o inverso? Faz tanto tempo que já não vou ao cinema...

Brasília, dezembro 2023/abril 2024.