Mémorias do paciente H.26 - A visita do sabiá!

Diversas foram as hipóteses que deslizaram e continuam a se escorregar pela minha mente. As pessoas que comandam este lugar seriam tolas ou simplesmente indiferentes? Por qual motivo me deixariam nesta cela com janela? Certo, eu entendo que esta é uma janela de fortaleza e que não há possibilidade de fuga, mas mesmo com todas essas barras de ferro, que se cruzam em padrões e atrapalham a visão, ainda assim há o que se ver, e mesmo que esta janela desse nos fundos de outro prédio ainda seria preferível isto a uma cela uniforme, sem nada que rompesse com estas paredes mortas. E aposto que neste lugar há inúmeras destas jaulas, celas almofadadas com tanta precisão e esmero que um espectador do lado de dentro terminaria de enlouquecer antes de encontrar as suaves depressões que indicariam onde haveria de estar a porta. No entanto, cá estou, numa masmorra privilegiada.

Mas pensando melhor...isso pode fazer parte de um plano elaborado para me levar à insanidade de forma mais acelerada, claro! Como fui tolo, agora consigo contemplar a verdade. Tudo isso foi orquestrado metodicamente. Me puseram aqui para poderem rir de minha cara, para que eu pudesse sempre enxergar a liberdade e a vida que há nesses jardins, sem jamais, alcançar toda essa graça, claro que foi isso, como fui ingênuo. Todos eles para inferno por isso, como há nesse mundo tanta gente péssima. O que Deus estaria pensando quando criou tudo isso?

Se a intenção era me aniquilar mais depressa, eles deram de cara no muro, pois, esta abertura na parede é a frágil e delicada mão que me sustém e me mantém, ainda, humano. Essas belas arvores e flores coloridas..... Sempre achei estranho que um recorte gracioso e verde deste pudesse existir tão próximo à um prédio de pedra fria e que cheira a morte sem, aparentemente, se contaminar.

Hoje vi um casal de papagaios se alimentando dos frutos roxos das palmeiras e no momento mais quente do dia, o sol apareceu, juro que vi a arara mais linda cortar os céus grasnando. O azul escuro de suas penas era tão vibrante que sentir, por alguns segundos, que poderia ficar cego só de contemplá-la. No entanto, próximo do crepúsculo vi um sabiá nas palmeiras, seu canto era melancólico, cheio de desalento. Aquele lamento me arrepiou e me deixou angustiado de uma forma que nunca fiquei ao olhar para os jardins. Já estava escurecendo e o sabiá era apenas um contorno acinzentado apenas levemente nítido aos meus olhos. Fixei minha atenção na sua diminuta figura e ele parecia tão triste apesar de tão livre.

Somos, eu e ele, dois passarinhos feridos e encerrados. É bem possível que nossa única diferença se resuma apenas ao tamanho de nossas gaiolas! Como pode isso?

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 30/03/2024
Reeditado em 31/05/2024
Código do texto: T8031166
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