Uma Grande Mulher ( Repost)
Foram anos de casamento; tínhamos dois filhos e uma longa história juntos. Infelizmente, vivíamos numa época em que não permitiam divórcios, sendo assim, precisei aguentar calada muita coisa que hoje em dia nenhuma mulher suporta. No início, tudo eram flores; não havia do que reclamar. Ele era atencioso, romântico, cavalheiro, respeitava-me, elogiava e até ajudava com as coisas em casa. Com o passar do tempo, tudo mudou; ele se tornou distante, agressivo, intolerante e folgado. Nós já não nos tratávamos com tanto amor, nem com tanto carinho; na verdade, com o tempo, parecíamos dois estranhos compartilhando da mesma vida, salvos os raros momentos em que ele me tratava bem e agia com ternura; eram os nossos melhores momentos juntos. Em tempo integral, eu servia como escrava, não só dele, mas também das crianças. Parece cruel, eu sei, mas essa é a mais pura verdade. Lembro-me que quando jovem eu sonhava em viver a vida da minha mãe. Parecia perfeita; ela era uma ótima mãe, uma ótima esposa e sempre carregava um largo sorriso no rosto. Às vezes, ao olhar em seus olhos, notava-se um vazio, como se faltasse algo, mas nunca me importei tanto com isso. Eu cresci e decidi seguir seus passos. No dia do meu casamento, ela estava lá, sorridente e radiante. Hoje, com mais maturidade, pude perceber que eram só aparências. Infelizmente, ela morreu sem me contar as barbaridades que vivia ao lado do meu pai, outro homem severo que tive o desprazer de conhecer. Eu tinha só dezoito anos e parecia saber o que queria. Mamãe tentou, mesmo que pelo olhar, me dizer que eu não estava preparada e que nada daquilo era realmente o que parecia ser, mas no auge de toda aquela minha alegria, eu não notei e também não imaginava o que o futuro me reservava. Três meses após o casamento, engravidei do primeiro filho. Foi naquele instante que percebi, e já era tarde demais, que mamãe vivia de aparências. Já não tinha como voltar atrás, não naquele tempo em que o divórcio não era bem visto, onde nós, mulheres, éramos obrigadas a viver ao lado de um príncipe que, no dia a dia, se tornava um sapo, um monstro ou até coisa pior. Descobri muito tarde que não havia nascido para me submeter às ordens de alguém, não daquela maneira. E só depois de muitos "corretivos" (esse era o nome que ele usava), aprendi que não tinha como fugir de tudo aquilo. Entendi na prática que as mulheres tinham que ser submissas; haviam nascido apenas para isso, era o que o meu avô dizia. Ainda tentei (sem sucesso) recorrer ao meu pai. Contei pouco do que se passava em casa, na esperança de que ele fosse ficar ao meu lado. E então ouvi dele que nós, mulheres, deveríamos agradecer por ter maridos assim tão bons. E ainda acrescentou que mamãe também passou por poucas e boas (antes de falecer, misteriosamente) e sempre se manteve calada. Meu pai me mandou voltar para meu marido, não antes de me repreender, dizendo que o que acontece em casa, permanece em casa. Além disso, fez questão de ligar para meu marido só para avisar que eu estava o difamando pela cidade. Ao chegar em minha casa, outra surra. Mulheres deviam aguentar caladas. Foi com esse episódio que aprendi isso. Mais tarde veio o segundo filho, o primeiro beirava os quatro anos de idade e nem imagina o quanto eu sofria. Foram anos e mais anos vivendo desta mesma forma. Perante todos, éramos um casal feliz, mas na intimidade tudo ia de mal a pior. Esperei muitos anos na esperança de que a sociedade pudesse mudar. E quando chegou este dia, quando finalmente a carta de alforria poderia ser entregue, quando finalmente eu poderia me tornar uma mulher livre, meu marido adoeceu. Eu não podia deixá-lo, não naquela situação. Foram longos dez anos, cuidando e zelando pela vida daquele moribundo que outrora havia matado todos os meus sonhos um a um, até que na semana em que completaríamos cinquenta anos de casados, ele se foi, só que já era tarde e não me restavam mais forças para então viver a minha vida. Eu já não tinha vida, não tinha tempo para ser feliz ou até mesmo para viver uma história de amor verdadeiro. Para todos os efeitos, fomos um casal feliz, que se amou e se respeitou até o fim dos seus dias.