Enxada Derfina, Carne seca e Bisteca de porco
Na época da nossa infância, o significado da palavra "bullying" nos era alheio. Recordo-me das brincadeiras compartilhadas com colegas e primos e do modo como solucionávamos desentendimentos, rolando no chão de terra batida ou puxando os cabelos uns dos outros.
Os apelidos eram recorrentes. Minha irmã, Nerlí, devido à sua magreza, era chamada de "carne seca" pelas filhas de seu Joaquim, um português que gerenciava o bar da esquina. Eu, por minha vez, era apelidada de "vaca magra" por minha prima, enquanto ela, por ser robusta, era chamada de "bisteca de porco". Em momentos de desavença, também a chamávamos de "enxada Derfina", um apelido que a feria profundamente, visto que fazia referência a seu pai, Delfino, um pedreiro que frequentemente utilizava uma enxada em seu ofício.
Na escola, as crianças eram submetidas a apelidos como "perebento", "zaroio", "olho de vidro" ou "quatro olhos" se portassem óculos, uma verdadeira exibição de crueldade. Atualmente, tal comportamento seria prontamente combatido. As crianças suportavam esses apelidos em silêncio, sofrendo em decorrência deles.
A discriminação social era algo que sentíamos profundamente. Recordo-me de minha mãe preparando nossa
lancheira diariamente, incluindo um pão com margarina e um suco artificial, o K-suco, acondicionado em um frasco reaproveitado que possuía a forma de um brinquedo. Sofríamos zombarias das crianças de famílias mais privilegiadas, que traziam em suas lancheiras sanduíches recheados com frios, sucos e maçãs frescas.
Participar da caixa escolar também nos causava constrangimento, pois os materiais fornecidos pelo governo gratuitamente eram de qualidade inferior aos adquiridos pelos alunos cujas famílias podiam comprá-los nas lojas do bairro. Possuir uma caixa de canetas Sylvapen ou uma caixa de lápis de cor da Faber- Castell com 36 cores era um luxo ao qual poucos tinham acesso.
Minhas irmãs e eu usávamos os lápis até restarem meros toquinhos impossíveis de segurar, momento em que finalmente os descartávamos. Minha mãe improvisava cola misturando farinha de trigo e água. Quando não possuíamos borracha para apagar os erros de escrita, recorríamos a um pedaço de miolo de pão, o que resultava em folhas de caderno borradas.
Apesar de todas essas adversidades, crescemos imbuídas de valores que nos acompanharam à vida adulta, graças à educação que nos foi transmitida no seio de nosso lar.