A Promessa
Acho que o ano era noventa e seis ou noventa e sete, não me lembro direito. Lembro-me somente das palavras daquele meu professor homossexual e careca, chamado Julio, não sei qual pergunta ou que o levou a mencionar naquele momento que o livro mais vendido no Brasil era O Alquimista. Eu talvez por achar a alquimia algo totalmente ultrapassado, ou por estar disperso entendi que o nome do livro era o alpinista. De modo que algum tempo depois nos início dos anos dois mil perguntei a bibliotecária da biblioteca de meu bairro se eles possuíam o livro o alpinista, ela com um leve sorriso, mas sem me corrigir, me mostrou onde se encontrava o tão falado livro. Isso eu me lembro muito bem era uma sexta feira. No sábado por coincidência havia chá de berço de minha irmã que estava grávida, e como eu detestava visitas, tranquei-me em meu quarto para ouvir música, e me propus a tentar ler aquele livro. Livro este que para minha surpresa me fez esquecer do resto do mundo a minha volta, tudo que sei é que viajei naquela história daquele pastor de carneiros chamado Santiago e me identifiquei muito com aquela historia que embora se passasse em um contexto muito diferente do meu, muito tinha em comum com minhas aspirações, meus medos, desejos mais profundos. De modo que guardei muito daquele livro em mim ainda que já não acreditasse em coisas místicas e já fosse o protótipo do cético que me tornaria um dia.
Vida que segue alguns anos se passaram, e eu que queria ser músico estava na casa de um amigo que também almejava ser músico, lembro-me que ia muito a casa dese meu amigo pois, sua casa tinha um estúdio rudimentar no qual muitas bandas dentre elas a minha que se chamava Katarina Verde, se aproveitavam para ensaiar e pagavam uma pequena quantia. Mas nesse dia eu não estava ensaiando, estava lá por recreação fumava cigarros, bebia cervejas e de vez em quando não sei se nesse dia rolava até um baseado. E foi justamente esse o papo que tive com o meu amigo, ele me disse que havia fumado um mesclado, mistura de maconha com crack e nas palavras dele eu devia experimentar essa nova droga, eu sem muito medir as consequências, e também sem ter muita informação sobre aquela droga, aceitei o convite. De modo que ficou combinado que quando um outro amigo mais chegado dele fosse lá fumar o tal mesclado seria minha vez de experimentar.
Chegado o dia, lembro-me que havia uma banda ensaiando na casa do meu amigo, de maneira que ele me chamou para uma varanda nos fundos da casa.
Estávamos nós três e enquanto eu assistia meu amigo dixavar a maconha, o outro cara triturava uma ou duas pedras de crack. Não lembro o que conversamos naquele momento, mas, aquelas palavras que aquele cara disse eu nunca vou esquecer:
_Você não vai voltar amanhã para me matar não? Porque...
Foi nesse exato momento, quando ele disse essas palavras que me lembrei do livro que havia lido há alguns anos, uma das coisas que ele dizia, era que nossos anjos utilizavam a boca de desconhecidos para nos dizerem coisas que precisamos ouvir. E foi por isto que naquele momento decidi não experimentar aquela droga.
Passado algum tempo lembro que chamei aquele amigo meu para ir no centro da cidade comigo comprar um MP3 e ele me chamou para passar na casa cara que havia me dito aquelas palavras, na volta do centro. Eu gostava de ir na casa dele, pois para mim que naquela época era um misero office boy, um cara que possuía uma lan house era um verdadeiro empresario, e o que eu mais gostava era que ele sempre me deixava navegar de graça na internet e eu adorava os chats de bate papo da época.
Mas aquele dia foi diferente ao chegar a lan house está se encontrava fechada, e quando adentramos lembro- me das palavras daquele cara "...é você está coradinho, você não deve fumar crack não". Lembro-me que não havia mais computadores naquele cômodo, lembro-me também que só havia uma cadeira velha de lata dessas de bar e aquele cara fumava crack de um modo que eu até então não havia visto, ele fumava em uma lata de cerveja amassada e com uns furos na parte de cima, lembro-me que quando ele terminou a pedra que estava fumando, abriu a lata a limpou, e colocou aquela borra em um cigarro, o qual fumou com intenso último prazer. Após isso ele veio dizer que tinha um dinheiro para receber, e que um cara iria levar uma arma lá para ele, e que ele iria cobrar uma divida de um cara...
Aquele clima de decadência me chocou muito e foi como que em lapso de extrema lucidez que me dei conta do quão grande foi minha sorte no dia que recusei fumar aquele mesclado. Foi nesse momento que fiz a promessa de que nunca experimentaria crack.
Hoje agradeço aquele livro que li despretensiosamente, mas que me livrou de uma vida a qual na melhor das hipóteses em que me vejo é eu morando na rua como pedinte. Eu que em um futuro longínquo daquele dia, fui internado em uma clinica para dependentes químicos por fumar maconha e estar surtado, pois em decorrência do abuso da maconha me tornei esquizofrênico, isso é outra historia. Mas o fato é que pude conviver de perto com pessoas que fumaram crack e pude ver o quão é difícil sair dessa droga e o quão marginalizados seus usuários são.
É por isso que hoje apesar de já ter lido autores muito mais eruditos, sofisticados, com historias mais criativas, que conseguiam descrever nos mínimos detalhes, até os segundos de sua amargura ou alegria, autores que conseguem explorar universos inimagináveis ou até mesmo imaginar os mínimos detalhes de mundos distópicos. Apesar de já ter acumulado uma pequena bagagem literária, ainda agradeço aquele autor simples que me passou uma sabedoria antiga, ainda que carregada de misticismo como a de que os anjos se comunicam pela boca dos outros ou seja preste atenção ao que os outros dizem ou ainda fale menos escute mais. É por isso que ainda agradeço aquele professor lá da sétima ou sexta serie que chamávamos de aeroporto de mosquito, tobogã de piolho que me indicou sem saber da importância ou consequências aquele livro teria em minha vida.