Discos voadores
Eu já vi discos voadores. Eu era criança, mas eu vi.
Não me assustei nem desassustei. Só fiquei surpreso. Desconcertado, na verdade. Parei no meio da rua, para ver. E eram vários...
Tá certo, conto como foi!
Foi assim: bem de manhãzinha, não tinha clareado direito e a mãe fez o café. Enquanto isso gritava meu nome. Chamava e dava a ordem para que me levantasse e me arrumasse pra vir tomar café, pra não me atrasar, pra ir pra escola, pra aprender, pra não crescer “burro como eu e teu pai”, dizia a mãe, enquanto ligava o rádio de pilhas para ouvir os cantores.
Nem tem como comparar. Naquele tempo não tinha esse monte de rádio ligado na tomada. Nem tinha televisão. Quando a gente queria ouvir música era no rádio… ou naqueles discos bolachão. Era só rádio ou disco tocado na vitrola, o aparelho de tocar discos. Por isso, em vez de vitrola, as pessoas diziam que ouviam os discos no “toca-discos”.
Hoje a gente diz que o disco de vinil é coisa do passado. Acontece que naquele tempo não existia o tal do CD. Pendrive…? Surgiu muito tempo depois. Nem se sonhava com internet... nem com esses modernos meios de se ouvir música nessas diversas mídias.
Hoje o cara inventa uma música, começa a cantá-la e a lança na internet nas tais mídias digitais.... mas lá em casa não era assim. A gente não tinha toca-discos... Ouvir música? Só no rádio!
Quando a mãe terminou de sintonizar a “Rádio Nacional” lá estava aquela dupla famosa: Jacó e Jacozinho: “Tomara que seja verdade que exista mesmo, disco voador....”.
Eu tomei meu café com bolinho frito e, logo em seguida, saí para a escola. Estava na quarta série e o “Grupo Escolar” onde eu estudava era do outro lado da cidade.
Naquele tempo a gente já morava na cidade, mas ainda mantinha as saudades da vida da roça. Na verdade nossa casa era bem na beiradinha da beira da cidade, era uma chácara...
Já não tínhamos mais as terras que o pai herdara do vô: geadas, minha mãe sem saúde, pouca produção na lavoura, geada castigando as lavouras, “peste suína” matando os porcos... e outros problemas que atingem o homem da roça, são alguns dos motivos que fizeram meu pai decidir pela venda das terras herdadas: para “pagar as contas”.
Pagou tudo.
O que sobrou deu pra comprar uma casa na cidade.
Foi dessa casa, na beirada da cidade, na beira da lagoa, que eu saí para ir à escola estudar: Quarta série do primário! A professora e os colegas, todos estranhos. Muito diferente da escolinha lá do sítio, onde a professora era a minha tia e todo mundo sabia quem era cada um.
Lá a gente conhecia todo mundo e todo mundo estudava na mesma sala: primeiro ano, terceiro ano, segundo ano, quarto ano... todo mundo junto. E a tia dava conta de tudo, só tinha um pouco de dificuldade comigo e com meu primo: a gente fazia muito ligeiro as tarefas que a professora passava e aí pegava brincar...
Agora, aqui na cidade, era tudo estranho, desde a professora. Era bonitona, mas estranha… não que tivesse manias estranhas, extravagantes, esquisitas… era estranha porque não era conhecida...
Mas eu não ligava pra isso. Eu gostava de estudar. E todo dia saia cedo de casa. Andava sempre pela mesma rua: tinha medo de me perder naquele vilarejo chamado cidade. Uma cidadezinha perdida no interior do Paraná.
Cidade pequena, não tinha novidades. Nem prédios altos. O mais alto era a prefeitura, lá no centro, perto da igreja, do outro lado da praça. E aquele casarão, na esquina, perto do grupo escolar, onde eu estudava: Uma casa enorme, de dois andares, bem na esquina. Embaixo era um armazém, tipo mercado, de hoje, e em cima a residência do dono do armazém.
Deixa eu voltar pro começo. O dia que vi os discos voadores. Foi bem no dia que ouvi a música de Jacó e Jacozinho: “Tomara que seja verdade que existe mesmo disco voador. Que seja um povo inteligente, pra trazer pra gente a paz e o amor”
Ainda não fazia muito tempo que a gente estava morando na cidade. Naquela beirada da cidade que ficava na beirada da lagoa que ficava bem na frente da nossa casa.
Bem longe da escola que ficava do outro lado da cidade onde ficavam todos aqueles alunos que eu não conhecia. Um monte de gente. Tinha um monte de primeiro ano. Outro de segundo ano. Tinha um tanto de terceiro e quarto anos... bem diferente da escolinha la do sítio, com uma sala só e todo mundo estudava junto.
Não era a “escolinha da tia”, era o “Grupo Escolar não sei o quê...”. Não lembro o nome da escola. Só lembro que era nome estranho; e era um enorme barracão, de madeira, com um pátio grande. Tudo era grandioso e novidade, principalmente pra mim: um gurizinho recém chegado pra morar na cidade, vindo lá da “escolinha da tia”…
Mas isto era igual: no final da aula a professora passava a tarefa de casa. Era sempre uma atividade ligada ao que a gente havia estudado naquela aula. E nesse dia a professora estava ensinando fazer redação: tem redação dissertativa e redação descritiva… e mais não sei o quê, que ela falou. Eu só lembro que a gente tem que desenvolver o tema proposto, redigindo nosso discurso: por isso redação!
Nesse dia a tarefa tinha sido fazer uma redação. Eu sabia fazer. Minha tia, minha professora, já tinha ensinado. Antes dela, minha mãe, irmã da tia. Minha mãe não era professora, mas tinha sido minha professora, pois me ensinou a ler e escrever... só não aprendi direito a fazer conta. Isso era uma coisa muito difícil, pra mim. Misturava muito esse negócio de números.
Mas redação era comigo mesmo.
E a professora bonitona, que era estranha, tinha passado a tarefa de fazer uma redação. Eu fiz!
O tema era livre. Quer dizer, ela não passou o tema. Era para escrever sobre qualquer coisa.
Chegando em casa, almocei e fui logo fazer minha tarefa. Não tinha outra alternativa. Antes de fazer as tarefas não tinha como sair para brincar. Enchi umas duas folhas do meu caderninho, falando sobre a ponta do lápis.
Terminei a tarefa, mostrei pra mãe e fui brincar. (E tinha que mostrar pra mãe, pra mostrar que tinha feito e pra ver se estava correto! se não estivesse bem feito, tinha que fazer novamente ou corrigir os erros...)
Hoje não me lembro mais o que escrevi, sobre a ponta do lápis. Mas a professora gostou. Gostou tanto que achou que não tivesse sido eu a escrever aquela redação. Aquilo já nem era mais uma redação escolar. Era quase um livro: Duas folhas.
Não, não eram duas páginas, eram duas folhas... na folha a gente escreve dos dois lados e cada lado da folha é uma página.
A minha redação deu duas folhas e um pedaço da outra página. Mas eu deixo ser duas folhas, pois tinha que descontar os rabiscos... É que eu, mesmo escrevendo a lápis, quando errava alguma coisa, não apagava. Rabiscava e continuava a escrever.
E não é que a dona professora bonitona achou que alguém tivesse escrito aquela redação e eu tivesse copiado de alguma revista... Não tinha internet nem google. Se a gente quisesse copiar algo tinha que ser de livro ou de revista. E tinha que copiar com as próprias mãos, usando lápis ou caneta. Não dava pra apertar um botãozinho de um teclado e zum! Tava copiado. Tinha que ir lendo e escrevendo… era assim que se copiava… e assim também se aprendia, pois tinha que ler para copiar.
Mas eu não copiei. Só que a professora cismou que tinha sido copiado de uma revista. Mas não foi! Saiu tudo desta cabeça aqui, ó!
Falei pra ela: “Eu não copiei. Imagina! Copiar uma redação?” Que graça tem isso se o bom da tarefa de fazer redação é a gente poder falar livremente… e dizer as coisas como a gente pensa… E eu era craque em fazer redação. E, como o tema era livre, fiz aquela sobre a ponta do lápis.
Mesmo assim ela ficou desconfiada. Eu era novato, ali. E, como ela não me conhecia nem sabia de quê eu era capaz, ela desconfiou. Hoje eu entendo. Já vi muito marmanjo dando uma de bonzão e sabidão, mas pagando pra alguém fazer seus trabalhos escolares. Até na faculdade já vi disso!
Copiar, então… Ainda mais nos dias de hoje que o cara nem precisa ler: aperta duas teclas pra copiar depois mais duas pra colar e tá pronto.
Mas eu não copiei aquela redação sobre a ponta do lápis. Tirei tudo da cuca. É só a gente pensar um pouquinho que as ideias chegam… aí é só escrever… livremente… depois a gente vai relendo e corrigindo, fazendo remendos, acrescentando algumas coisas e tirando outras… até ficar um texto gostoso de ler!
Entretanto, naquele dia, como já disse, a professora não acreditou. Depois, bem depois, passei a ser o xodozinho dela.
No fim da aula deu outra tarefa: outra redação. Desta vez uma descrição. Era para contar alguma experiência vivida depois da aula...
Não sei, mas acho que ela fez isso só para ter certeza de que eu tinha entendido, ou acho que era para eu entender que estava de olho em mim, ou acho que ela queria ver se eu ficava nervoso com a nova tarefa, ou acho que ela só queria me testar… só sei que ela olhou bem pra mim, e disse com cara de quem sabe que está falando com um aluno que aprontou… mas não aprontei. E entendi o que ela queria: que a gente contasse algo que aconteceu com a gente, depois que terminaram as aulas.
Eu devia ter guardado meus cadernos antigos. Nunca guardei nada. Terminavam as aulas e meus cadernos perdiam-se por aí. Hoje, acho que teria um monte de redações que poderiam formar um livro de crônicas… Sei lá, será que eu acharia bons meus escritos antigos? Será que não eram só coisas de criança? Ou será que eu era bom mesmo? Já se passaram mais de cinquenta anos… sei lá… não sei… como saber? Eram só coisas de coisas de criança? Ou eram coisas de criança pensando que tinha alguma coisa a dizer?
Terminou a aula. Antes de sair, ajudei a professora bonitona. Eu era tímido e meio acanhado, por ser novato, mas não era bobo… e, de alguma forma sabia que a professora estava me testando, ela me deu várias dicas de como escrever. Conversamos sobre o que escrever, numa redação sobre “o que me aconteceu depois da aula?
Ela foi para a sala dos professores e eu saí. Tinha que chegar logo em casa. Já estava com fome. Nem imaginava que passaria por aquela experiencia: discos voadores…
Minha experiência com os discos voadores. Minha experiência virou o tema da minha redação sobre “o que me aconteceu depois da aula”.
Foi assim.
Eu caminhava, como sempre, imaginando não sei o quê. Só sei que caminhava na direção de casa. Com fome. Ah! Ia pensando: o que escrever numa redação em que a gente tem que contar alguma coisa que aconteceu com a gente. E eu pensava, comigo não acontece nada. Lá em casa também não… o que escrever?
Já tinha passado pela praça. E passei bem pelo meio. Era linda: árvores, pássaros, borboletas, primaveras floridas… do outro lado da praça já era a rua por onde descia para chegar em casa. Na outra esquina já se podia ver a mansão: em baixo o armazém. Em cima a residência…
Acabara de passar pela frente da última porta do armazém: duas portas olhando para uma rua, duas portas olhando para a outra rua. Era uma esquina. Foi quando ouvi o barulho. Pareciam pessoas falando alto uma com a outra. Nem deu tempo de olhar para tentar ver de onde vinha aquela discussão.
Zummm!
Ouvi o zunido como se fosse algo que passava fazendo barulho.
Olhei para cima. Céu limpo, azulado.
Plaaacc!
Era o som de algo se quebrando.
Foi quando identifiquei os discos voadores.
Entendi, também as vozes, parece que estavam discutindo.
E era uma discussão!
Acho que estavam brigando. E na briga jogavam coisas, um no outro, e algumas dessas coisas atravessaram a janela, caindo no meio da rua.
Foi quando vi aquele tanto de discos voadores. Voando pela janela...
Era o tema da minha redação. Nem pensei duas vezes. Corri pra casa pra fazer minha redação. Contei minha experiência dos discos de vinil, atirados pela janela, voando sobre minha cabeça.