RECORDAÇÕES ESCOLARES parte 4
A instituição escolar já foi decantada em prosa e verso por eminentes escritores, educadores e poetas. Pouco se poderia agregar de novo aos conceitos emitidos sobre esse templo do saber e da formação humana.
Não obstante, no caso da simpática escola primária Afonso Pena, vale a pena arriscar-se a recordá-la como forma sui generis de história em quadrinhos, recheada de divertidas peripécias vividas por alguns de seus numerosos pequenos heróis e heroínas que nela estudaram da primeira à quarta série, entre 1959 e 1962.
Ainda que não seja possível à memória do cronista reproduzir tais peripécias com total exatidão cronológica, muito menos assegurar em que série algumas de fato ocorreram, justifica-se o presente esforço de reportagem.
Não há dúvida, porém, de que a primeira historinha foi protagonizada pelo Abílio, dos mais sapecas da turma. Mal a boa professora, D. Nylza, entrou na sala para conhecer seus novos alunos, naquele mês de março de 1959, o que foi que ela viu? O menino estava de pé em cima da carteira escolar, a fazer caretas para outros coleguinhas. Quando percebeu que havia sido surpreendido em flagrante, Abílio sentou-se de imediato, todo encolhido, e ficou de todas as cores, à espera da bronca terrível e inevitável.
Para sua sorte, D. Nylza era pessoa extremamente fina e paciente, que sabia o momento certo de agir. Engoliu em seco, continuou seu trajeto até a mesa de professor, acomodou-se e mansamente saudou a turma. Adiantou a todos como pretendia cumprir o programa do ano letivo e, em pouco tempo, conquistou a simpatia e o respeito da classe.
De outra vez, a professora surpreendeu uma folha de papel onde o Fausto resolvera escrever que ele namorava a Ângela, fulano namorava outra menina e assim por diante, entre cicranos e beltranos. Tomou a folha do menino e, sorridente, explicou-lhe que ele e os demais ainda tinham de comer muito feijão com arroz para ocupar-se de sonhos de namorico. Sem dúvida, longo se mostra o caminho do aprendizado, inclusive no tocante ao amor. Cada passo no momento devido.
Por falar em sonhos, Vera Lúcia, a garotinha que chegava de ambulância à escola, destruiu o de alguns colegas, a quem eventualmente oferecia carona na volta das aulas. A danada foi dizer-lhes peremptoriamente que Papai Noel não existia. Que choque! Em uma época ingenuamente feliz, mitos de Natal e de Páscoa faziam parte do universo infantil por bom tempo. Os pais tomavam grande cuidado e aguardavam a hora mais oportuna de revelar a verdade aos filhos. Aquela revelação abrupta e fria por parte da coleguinha certamente magoou e indispôs os desiludidos em relação à desmistificadora.
Choque talvez menor, mas bem mais hilariante, ocorreu numa ocasião em que D. Nylza perguntava a cada aluno o nome da respectiva mãe. Ela queria anotar todos direitinho com vistas à próxima festa que organizaria na escola. Quando chegou a vez do Carlos Afonso, surpresa e consternação! O menino simplesmente não sabia o nome de sua mãe. Foi necessário levá-lo à sala da diretoria para que ele telefonasse e indagasse. A turma poupou-o de uma gargalhada geral e de maior constrangimento, no entanto, graças aos ensinamentos prévios da querida mestra de que não se devia caçoar dos erros alheios.
Outro colega, o Paulo José, despertava certa curiosidade entre os demais. Em sua testa, via-se marca redonda em baixo relevo, com uma série do que pareciam pequenos furos. Algumas crianças chegaram a trocar idéias a respeito. José Manoel desconfiou tratar-se de uma martelada que o menino teria tomado. Rosângela retrucou que um martelo não deixaria furinhos assim, ao que Ariel lembrou que a mãe batia nos bifes com um martelo de cozinha dentado. Alberto discordou dessa possibilidade e afirmou, convicto, que a tal marca era idêntica à das que deixavam as vacinas contra varíola, comuns entre a garotada na época. Heloísa questionou, no entanto, se alguém iria tomar injeção na testa. À falta de solução, logo o grupo se esqueceu do assunto e, por educação, nada perguntou ao único que poderia desvendar o mistério.
Regina Isabel, além de usar óculos de maior grau do que os de seus coleguinhas míopes, possuía uma característica especial. Já sabia tocar acordeão aos oito anos. Numa das festas organizadas pela professora para celebrar o Dia das Mães, levou seu instrumento e apresentou-se, sendo bem aplaudida.
Essa coleguinha morava na mesma Rua Antônio Basílio deste narrador. Por isso, era comum acompanhá-lo e sua mãe no trajeto de volta da escola. Como tudo era muito mais tranquilo então, quando chegávamos à altura de nosso edifício, atravessávamos a rua enquanto Regina Isabel prosseguia sozinha pela calçada até seu prédio, uns cinqüenta metros adiante, sem qualquer problema.
O único cuidado nesse trajeto envolvia a unidade do Corpo de Bombeiros situada bem na esquina das Ruas José Higino e Antônio Basílio. A mureta baixa do local continha, atrás, uma cerca viva de fícus italiano. Certa vez, ao caminharem muito perto das plantas, a menina e seu colega viram que suas blusas brancas do uniforme escolar ficaram repentinamente cheias de pontinhos pretos. Eram os temidos lacerdinhas, insetos que proliferaram no início dos anos 60 no Rio de Janeiro e que ardiam feito pimenta caso entrassem nos olhos. Desde esse incidente, os dois passaram a guardar segura distância da referida mureta.
Se havia quem pontificasse na música, também apareciam outras vocações artísticas. Jorge Luís mostrou-se exímio desenhista de caravelas, durante uma aula sobre o descobrimento do Brasil. A professora perguntou quem saberia desenhar barco desse tipo, ele candidatou-se e deu conta do recado sem precisar servir-se de um modelo. A caravela, mesmo feita a giz no quadro-negro, ficou tão bonita que D. Nylza a deixou até a continuação da aula no dia seguinte, com pena de apagá-la.
Todos gostavam de desenhar, de modo geral, e, além do Jorge Luís, várias crianças produziam belos trabalhos, sempre enaltecidos pela professora, com seu sábio dom de estimular os aprendizes. Um desses artistas mirins, cujo nome não será aqui revelado por delicadeza, mostrava-se meio do contra, contudo. Quando D. Nylza sugeria à classe desenhar um relógio, por exemplo, ele emburrava e punha-se a fazer o que queria (quase sempre desenhos de caubóis e índios ou, então, de dinossauros). Para sorte do pirralho, a mestra era mesmo bondosa e compreensiva, deixando o barco correr sem a necessidade de tempestades em copo d’água.
Outras atividades também eram apreciadas. A escola favorecia apresentações teatrais, quer de formato simples em que as crianças apenas representavam figuras históricas ou personagens fictícias, quer mais complexas, com a montagem de palco específico para o enredo da peça. Este cronista lembra-se de haver representado os “importantes” papéis de D. Pedro I e de Pinóquio, graças à facilidade que mostrava para decorar textos. A turma da D. Nylza divertiu-se muito na peça em que ela e outras professoras fantasiaram-se de bruxas.
Atividades e jogos talvez tenham sido exageradamente promovidas em 1961 e 1962, sob a nova diretoria da escola, em detrimento do ensino convencional. Para compensar a queda de nível nas matérias ministradas nesse período, a zelosa D. Nylza viu-se obrigada a dar aulas particulares a alunos que, finda a quarta série, iriam prestar prova para continuar os estudos em colégios mais exigentes.
Algo que pode igualmente ter preocupado as professoras nesse período foi a prática por alguns alunos de determinado “comércio de mercadorias”. Mesmo os bem comportados (e até uma ou outra menina) envolviam-se em trocas de figurinhas para preencherem seus respectivos álbuns, o que se agravaria com o advento da Copa de 1962 e a profusão de coleções de astros do futebol. Além do troca-troca, a garotada viciou-se nas disputas de “bafo-bafo”, jogo em que se viravam as figurinhas de face para baixo e os jogadores precisavam fazê-las voltar a ficar de face para cima, batendo nelas com a mão em concha. Os velhos bons tempos não estão livres de vícios e idolatrias.
Apesar de a maior parte da turma ter seguido junta, da primeira à quarta série, houve quem saísse e quem entrasse. Maria Cristina, sobrinha da D. Nylza, entrou na terceira série, juntamente com Elizabeth Meireles, Jurema e Kátia II. Enquanto a última era tagarela e agitada, as outras eram comportadas e estudiosas, tirando boas notas. Ademais de sua aplicação, Jurema tinha linda caligrafia, a exemplo de Lília, Maria Alice e Valéria.
Quando a mãe não podia buscá-la na saída da escola, Elizabeth Meireles costumava também vir com este cronista até seu apartamento na Rua Antônio Basílio. Os dois colegas brincavam até a hora de ela ir para seu lar, nas proximidades da Rua General Roca, a dois passos de onde ele morava. A menina era das mais bonitas da classe e só não houve declaração de amor do narrador porque ela, ó cruel, o humilhava, derrotando-o sempre no “bafo-bafo”. Não existia possibilidade de romance ante tamanha humilhação!
Jurandir foi um dos meninos que se somaram à classe na segunda ou na terceira série, impossível precisar. Também era sobrinho de professora, no caso, da D. Lucy, que o levou à sala para apresentá-lo à sua colega. Essa apresentação revelou-se peculiar, pois a tia do menino preveniu D. Nylza de que ele era levado, mas, se ela tivesse de puxar-lhe a orelha, deveria observar qual, já que uma delas fora seriamente deformada por acidente que o sobrinho sofrera.
Escapa a este relato se o acidente foi mordida de cachorro ou o quê. A orelha do garoto tinha aspecto bem esquisito. Em outra escola ou em turma diversa, ele poderia haver sofrido com o deboche e o preconceito dos amiguinhos. Jamais enfrentou problemas, todavia, com os novos colegas. D. Nylza ensinara muito bem a todos a relacionar-se com respeito e nunca zombar de quem quer que seja.
Aliás, cabe salientar que, em seus quatro anos na escola, pelo menos este narrador não se recorda de qualquer entrevero significativo entre seus colegas. Todos aparentavam dar-se bastante bem. Ambiente profundamente distinto do que viria a encontrar em seus tempos posteriores de ginásio, onde brigas e assédios constituíam moeda comum. A ponto de aumentar a grande saudade que ainda hoje subsiste dos tempos pacíficos e agradáveis de Afonso Pena!
Bem, é tudo o que há por ora pra contar. Caso ainda surja algo no baú da memória, retomar-se-á o fio da meada.
Brasília, novembro 2023.