RECORDAÇÕES ESCOLARES parte 2

A Rua Barão de Mesquita, no final dos saudosos anos 50, nem lembrava a artéria movimentada e muitas vezes engarrafada dos dias atuais no Rio de Janeiro. Tudo mais pacífico e silencioso.

Mesmo assim circulavam carros, bondes, ônibus e lotações, requerendo a atenção zelosa das mães que conduziam os filhos pela mão até as escolas ali situadas.

Entre os veículos circulantes, uma ambulância da empresa S/C AME tendia a chamar a atenção dos pedestres, ainda que não estivesse com a sirena acionada. Várias pessoas viravam o rosto para acompanhar a passagem do utilitário. E, se ele se detivesse na beira do meio-fio, despertava maior e natural curiosidade.

Será que a ambulância vai recolher alguém? Ou dela descerão médico e enfermeiros esbaforidos na pressa de atender a um doente em sua residência?

A curiosidade possivelmente se dissipasse logo ao verem todos saltar do veículo uma menininha de uniforme escolar, pasta e merendeira a tiracolo. Numa rotina diária, ela deixa a caminhonete e caminha em direção à Escola 3-8 Afonso Pena (na época, escrevia-se Affonso Penna, com toda a pompa e circunstância devidas a um ex-presidente da República).

Vera Lúcia, filha de dirigente daquela empresa, todo dia de semana vinha desse jeito para as aulas, findas as quais tomava a ambulância de volta. Vez por outra, dava carona aos coleguinhas que residiam próximo dela.

O uniforme escolar das escolas públicas compunha-se então de camisas brancas, com as letras EP em relevo nos bolsos, bem como de calças ou saias azul-marinho. Os cadernos escolares, pautados e de formato horizontal, também eram padronizados e traziam, na capa, a figura de estudantes com o referido uniforme.

Os alunos das diferentes classes preparam-se para entrar na escola, formando fileiras no pátio de forma disciplinada (mais ou menos). Todas as crianças vão entoar o hino nacional e aguardam a seleção de três felizardos a quem incumbirá a honra de hastear a bandeira.

Valéria e os gêmeos Ricardo e Roberto, da turma da D.Nylza, são os escolhidos. Com visível satisfação, os três acompanham a professora escada acima até a frente da entrada principal do belo casarão antigo ocupado pelo educandário. Cada um recebe sua relevante missão: dois sustentam a bandeira enquanto o terceiro vai puxar o cordame e içá-la até a ponta do mastro.

Parece simples, mas o hasteamento tem de ser sincronizado para que o pavilhão chegue ao topo junto com a última estrofe do hino cantado pelas crianças no pátio abaixo. Se chega antes ou depois, paira no ar perceptível constrangimento generalizado, que abate, sobremaneira, o aluno ou a aluna responsável pela falha ao fazer subir a bandeira.

Valéria, Ricardo e Roberto cumprem sua magna tarefa com maestria, o que deixa a professora orgulhosa e confirma sua avaliação de serem um trio seleto de alunos sempre aplicados nos estudos e compenetrados nas suas obrigações. D. Nylza tem sorte, pois, além desses três mosqueteiros, conta com outros bons D’Artagnans na classe. Lúcia Maria, Manuel, Joyce, Maria Alice e mais uns cinco ou seis coleguinhas costumam brilhar na sala de aula, lendo com perfeição e respondendo corretamente às questões de português, aritmética e conhecimentos gerais.

O entusiasmo da meninada em cantar o hino e participar ocasionalmente do hasteamento da bandeira pode indicar que seria mais fácil sentir-se patriota nesses já longínquos tempos. Haveria maior dose de ingenuidade? O Brasil pareceria então melhor ou despertaria maior dose de confiança? Questões que este narrador não tem como responder. Levanta-as somente por seu espírito especulativo de eterno estudante.

Sim, o cronista também foi parte, com muita satisfação, desse saudoso grupo de alunos daquela escola pública. Todos ingressavam contentes na sala de aula e a cantoria começava:

“Entrando na nossa sala,

Cantamos com alegria,

Saudamos a professora (ou, então, nova ou novo coleguinha):

Bom dia! Bom dia!”

Foram muitas as canções aprendidas. Pouco a pouco, serão aqui evocadas. Havia prazer em cantar e em participar das atividades, dentro ou fora da sala. D. Nylza, jovem solteira na faixa dos trinta anos, não tinha filhos - o que seria um escândalo na época -, mas dispunha de instinto maternal suficiente, associado ao admirável bom senso, para saber lidar com os pouco mais de trinta alunos que tinha de instruir e educar. Falava sempre com candura, mas impunha respeito à classe.

Pelo fato de haver acompanhado a turma da primeira à quarta série, estabeleceu laços de carinho e amizade com as crianças e as respectivas mães, que reconheciam seu trabalho digno de elogios como educadora.

Essa figura querida despediu-se recentemente deste mundo, para tristeza de quantos tiveram o privilégio de conhecê-la. Chegou quase a fantásticos 99 anos, já na condição de viúva. Havia casado e sido feliz, como bem merecia.

Antes de manchar o papel com lágrimas, convém recordar uma das brincadeiras (sempre instrutivas) que a mestra gostava de organizar com sua turma. Tratava-se de uma barquinha carregada de... frutas, por exemplo. Aí, cada aluno devia dizer o nome de uma fruta. À medida que o jogo avançava, as frutas iam-se esgotando e quem não soubesse citar uma nova, saía da competição. Vencia quem tivesse o “cesto” mais cheio de nomes de frutas. A tal barquinha podia trazer animais ou diferentes opções de conteúdo. Essa brincadeira permitia muita variação e estimulava as crianças a aprender cada vez mais de tudo.

Essa conversa de frutas deu fome. Hora do recreio. As recordações prosseguem em outro momento.

Brasília, outubro 2023.