Além do medo (relato de sonho)
É sempre estranho acordar ali. Não há semelhança com nada que eu conheça. O cheiro é diferente, a umidade do ar, os sons da natureza. Ali tudo me traz paz. E eu estava ali, mais uma vez, a esperar não sabia o quê. Estava descalça, senti os pés tocando as folhas secas e ainda verdes pelo chão. Senti-me parte da terra quando meus dedos cavaram instintivamente por baixo das folhas. A terra estava fria.
- Então você deseja entrar?
Eu olhei e a vi. A mulher serpente estava na entrada da caverna.
- Não, não quero. Mas não sei se tenho escolha…
- Sempre há escolha. Você mesma disse isso.
- Sim, há escolha. Mas nesse caso, eu preciso passar pelo processo.
Precisa atravessar para chegar ao outro lado…
- Então, não tenho escolha.
- Claro que tem. Pode escolher ficar desse lado. É seguro, não é? É cômodo. Você já conhece, sabe os perigos que moram aqui, viu a escuridão e sobreviveu a ela.
Eu assenti com a cabeça, mas me arrependi depois. Eu tinha que atravessar. Queria saber o que havia do outro lado. E eu não fazia a menor ideia do que me esperava lá dentro, ou fora da caverna.
- Esse é o momento em que você percebe que não tem controle sobre a própria vida, não é? Você só pode segurar até um certo ponto, dali por diante, apenas o Universo guiará os acontecimentos…
- Por isso não acredito na escolha. Se o Universo ou a Criação estão guiando os acontecimentos, por que eu deveria me preocupar em escolher? Já tem um caminho traçado. Burrice me preocupar com escolher certo…
- Há um caminho traçado. E há ainda outras centenas de possibilidades fora desse caminho. Viver é andar no escuro, equilibrando-se numa corda bamba sobre um precipício.
- Que loucura. Quem vai querer iniciar uma jornada dessa? Fica em terra firme, longe do precipício.
- A questão é que todos nós já estamos no meio da corda quando nos damos conta. À cada dia que se vive, é um momento a mais sobre a corda.
Eu estava pensativa, calada, então ela se aproximou de mim e continuou.
- Se você escolhe ficar parado, vai cair. Em algum momento, vai lhe faltar forças. A corda vai balançar, pode se romper, você pode ficar tonta. A certeza é que, mais cedo ou mais tarde, você vai cair. Mas, andando, seguindo em frente, a chance de conseguir chegar do outro lado é de 50%.
Eu sorri. Ela entendia muito de porcentagem. E eu entendia pouco sobre a vida.
- Então, entrar na caverna me dá 50% de chance de chegar do outro lado ilesa e 50% de chance de morrer tentando. É isso?
Ela sorriu e virou as costas para mim.
- Ilesa, não. Se você decidir entrar, saiba que não sairá de lá da mesma forma que entrou. Uma vez que você decide enfrentar a sua própria existência mental, você confronta todos os monstros que ela criou. E ela sabe do que você tem medo. Ela vai tentar de todas as formas te fazer parar e voltar.
- Eu não sei se quero ir…
- Viver é agir por fé. Você entra, anda pelo escuro, atravessa a corda mesmo bamba, crendo que há algo mais além de sua compreensão que está cuidando de tudo.
Eu fechei os olhos e suspirei. Senti uma brisa gelada no rosto e um arrepio cortante na minha espinha. Quando abri os olhos, gritei de susto. Estava sobre uma ponte de corda. Ela tremia e eu balançava, junto com ela.
- Me tira daqui!
- Você precisa se decidir…
- Eu quero sair daqui agora! Me tira daqui, por favor!
Eu vislumbrei o "chão" abaixo de mim. Não havia indicações de fim.
- São pedras lá embaixo. Bastante afiadas e pontiagudas. Cair é morte na certa.
- Você não está ajudando.
Minhas pernas tremiam. Minha boca estava seca, meu coração disparado e eu vi que a corda começava a ceder sob meu peso.
- Você precisa decidir se vai continuar ou voltar.
- Eu não consigo ir em frente!
- Pare de repetir que não consegue! Não cansa da mesma frase o tempo todo?
- Eu não consigo nem parar para pensar!
- Você não precisa pensar, precisa caminhar. Abra seus olhos, ative seus sentidos!
- Não vejo nada, como vou ativar meus sentidos?
- Se não enxerga, então ouça, sinta.
Eu não conseguia me concentrar. O medo havia me paralisado. A corda bambeava e eu, de braços abertos, lutava contra a queda iminente. Então eu engoli em seco e lembrei que minha mente podia criar qualquer coisa, qualquer coisa. As pernas ainda tremiam, mas eu pensei em um caminho de pedras, uma ponte sobre a qual eu havia caminhado há muito tempo. Arrastei o pé para a frente do outro e me equilibrando, mantive o meu pensamento firme no caminho de pedras. O vento uivava, aquele arrepio nas costas e as pernas tremendo. Mas eu não via mais a corda, apenas o meu caminho de pedras. Fechei os olhos e firmei o pensamento. "Eu consigo, eu consigo, é só me equilibrar, continuar andando e me equilibrar."
Foi quando senti o tremor parar aos poucos. A corda parecia mais grossa e firme do que antes. Aos poucos, tive a coragem de abrir os olhos e vi que não havia ponte de corda, mas aquele mesmo caminho de pedras que havia pensado.
- Como é isso?
- Nunca houve perigo algum… O medo lhe fez crer que não conseguiria continuar, o abismo era muito fundo, o vento muito frio, você muito fraca. Nunca houve abismo, nunca houve frio, somente a sua mente lhe pregando peças, o tempo todo.
Olhei ao redor e só então percebi que estava dentro da caverna. Ela estava abaixada, apoiada sobre o joelho direito, rabiscando o chão. Ergueu os olhos um momento é sorriu:
- Se você só consegue ver através dos olhos do medo, nunca verá a verdade. Nunca alcançará o outro lado…
Eu sorri. Ela estava sempre certa.
- Podemos? - ela convidou-me mostrando o caminho.
Seguimos andando por alguns passos em silêncio. Eu precisava aprender mais sobre tudo aquilo.