Olhar mais devagar

Impressionante como passamos rapidamente pela vida. Quando nos damos conta já se passaram anos e anos. Já fomos crianças, adolescentes, jovens e trilhamos uma vida adulta cheia de responsabilidades, problemas, superações e sucessos. Olhar para trás nos faz caminhar mais rápido para o trajeto final. Pare, observe e olhe mais devagar para as coisas ao seu redor. Aproveite melhor cada momento e cada pessoa que estiver próxima. A vida é feita de pequenas novelas, com desfechos diferentes e com personagens diferentes. Não queira ver o final antes da hora.

Com certeza, você já sentenciou isto algumas vezes: "minha vida é uma novela" ou "minha vida daria um livro". Isso mesmo: escreva- o e interprete-a. Busque os detalhes e os porquês dos acontecimentos. Você foi o personagem principal ou aceitou sem ambição ser um coadjuvante? Olhe devagar para tudo ao seu redor. Clique sua câmera, não deixe passar as pequenas imagens, holografe. Registre para a posteridade a sua passagem por aqui; seus descendentes merecem te conhecer e conhecer de quem vieram.

Lembra das gavetas? Vai abrindo devagarinho cada uma delas. Pesquise com cuidado, tente entender porque essa memória está ali guardada, que significado ela tem para você? Hora de criar suas narrativas e compartilhá-las com quem interessar. Verás que terás muitos outros personagens que se entrelaçam nesses capítulos. Olhe devagar.

Hoje quero abrir uma gaveta desde muito tempo, ainda relíquia dos móveis rústicos, feitos artesanalmente por meu avô Ângelo. Eu só o conheci através das lembranças de minha mãe e das irmãs mais velhas, e de poucos objetos e fotografias antigas. Imigrante italiano, ex- combatente da Primeira Guerra Mundial. Saiu da Itália em 1923, deixando para trás pais e irmãos e um país envolvido em conflitos mundiais. Deixou irmãs e um irmão fugitivo, vivendo nas montanhas como desertor e um outro morto, pisoteado num vagão de trem, como prisioneiro dos alemães. Deixou em terras italianas muita dor vivida, mas também o amor da mãe Rosa e do pai Leopoldo. A sua trajetória em terras brasileiras não foi fácil. Morreu quando eu ainda era bem pequena.

Os demais avós, eu tenho lembranças mais recentes. Convivi e tenho memórias de cada um, e com elas poderia escrever um romance de época. Sabe, é como a minha gaveta " Avós" tivesse divisórias e dentro desses compartimentos estão embrulhadas muitas relíquias. Paro para pensar, olho devagar, vou tirando lentamente cada papel, acaricio mentalmente, mas com o coração acelerado.

Minha Nona Concheta, uma fortaleza. Personagem forte, principal de uma saga familiar. Foi, a vida toda, resiliente, foi capaz de se recuperar das situações de crise e aprendeu com elas. Resignada, nos ensinou a ter o pensamento otimista e a certeza de que tudo passaria. Abandonou o país de origem, perdeu o noivo na guerra. Casou-se com meu nono e seguiu-o para viver na América. Nunca mais viu os pais e irmãos, constituiu sua família brasileira. Trabalhou duro ao lado, ou até mais que meu avô. Viúva, viveu em doação. Amou os " poveros". Morreu como um passarinho, no silêncio e em oração.

Vô Joãozinho, miudinho, submisso à minha avó Nica. Muito querido pelos filhos e netos. Trabalhou na roça, no engenho de cana. As minhas lembranças são poucas do seu tempo produtivo. Lembro bem do final da sua vida, já doente, andando apoiado pelos filhos; da sua visita de despedida ao meu pai doente. Gostaria de ter sabido mais do seu tempo de juventude, de ter tido mais momentos em criança com ele. Olho para uma foto 3x4 e imagino-o ao meu lado, vejo nele o meu pai. Sinto emanar dele a paciência e a humildade em pessoa.

Ah! E a vó Nica. Mulher de temperamento forte, tomou decisões avançadas para a sua época. Deixou a família no sítio e veio morar e trabalhar como costureira na cidade. O que passava pela sua cabeça não sabemos, mas persistiu até o fim. Defendia os filhos, brigava com as noras. Não tenho relatos de ser amorosa com os netos. Mas, era evidente que se colocava em primeiro lugar nas relações familiares. Os filhos a tratavam por "mãezinha" e a amavam incondicionalmente . Lembro- me bem de uma visita dela à nossa casa e como cuidadosamente descascava e comia a laranja "lima da Pérsia", dizendo que fazia bem aos rins. Seus traços físicos estão no DNA de alguns netos.

Vou fechando devagar esta gaveta, no momento, tenho dados suficientes para contar a minha origem aos meus filhos e netos. Quero que saibam e valorizem os caminhos e pegadas deixadas pelos seus ancestrais. Esta é uma herança imaterial que ninguém usurpará da nossa história, quero que meus filhos acrescentem suas memórias às minhas e possam repassar aos seus filhos uma herança maior ainda. Por isso, o olhar deve ser lento.

Estela Maria de Oliveira
Enviado por Estela Maria de Oliveira em 14/11/2023
Reeditado em 15/11/2023
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