Vivendo

Esse é o estudo de personagem pro livro que estou escrevendo: Lona Preta, Chão Pisado.

"Diferente do que muitos pensam ou que eu leve a crer, não nasci este homem triste e bêbado que você vê hoje. O que você vê é na verdade o que sobrou, se contorceu, diluiu, criou crosta e foi corroído pelo tempo e pelas mazelas que a vida me ofertou: sou carpinteiro por necessidade e um alcoólatra por esquecimento.

Em meus primeiros anos de vida fui menino da porteira. Vivi em um sitio grande de minha família, criávamos vacas leiteiras. Em meio a vacas e bezerros, pastagens e capinheiras, curral e pilhas de estrume. Sentia-me desde pequenino um vaqueiro.

Desde cedo trabalho muito. Minha família dedicava-se a cuidar das criações. Não era fácil, mas não havia vida melhor do que aquela.

Vivíamos em um casarão de adobe, piso de lajota, telhado português com seus caibros e empena que eram verdadeiras toras. Casa ampla e arejada maior do que o de costume mas ainda assim parecida com as modestas construções daquela região: paredes brancas, porta e janelas de tabua aplainada com tramelas, nas paredes ganchos onde se penduravam os itens pessoais juntamente com as coisas utilizadas no trato dos animais.

Terreiro descampado e limpo. Havia sempre dois ou três cães deitados à espreita de qualquer movimento no mato, na estrada ou nas panelas. Criação de patos, gansos, muitas galinhas e algumas cabras preguiçosas.

O pequeno paraíso familiar.

Tudo se desfez em um único gesto de covardia. Numa noite, depois da Ave Maria, lampiões apagados, crianças recolhidas em suas camas, os cães começaram a latir: latidos e vozes.

Ladrões de gado.

Pai desesperado viu da janela dois homens arrastando um bezerro, como quem defende filho de um mal feitor, armou-se com uma foice e correu atrás dos sujeitos. Numa fração de segundo, um dos assaltantes sacou espingarda da bandoleira e atirou matando meu pai.

Deste trágico episódio minha família nunca se recuperou.

Mãe não soube lidar com a sua perda sepultando-se em vida dentro do quarto. Sobrou à nós, crianças, manter o sitio de pé. Abandonamos a escola. Passávamos o dia inteiro trabalhando, mas não era possível nem mesmo cumprir metade das obrigações de meu pai. O sitio, assim como toda a família desabou. Meu irmão não aguentou a pressão e fugiu. Eu, o caçula, fui emancipado à homem da casa.

Foram sendo vendidas as vacas para pagar as dívidas, os bichos do terreiro terminaram na panela. As meninas foram morar na casa da madrinha. Restou apenas eu e minha mãe enlouquecida. No Inverno de 1968, aos dezessete anos, me vi sozinho no mundo. Minha mãe finalmente descansou.

Abandonei o sitio e fui trabalhar na construção civil seguindo o trecho por todo canto do Brasil. Um dia mudei para a Vila, casei com uma viúva dez anos mais velha do que eu. Vivemos muito felizes por bons sete anos. Enviuvei.

Dei de beber.

Trabalho muito, não por gosto, não por dinheiro. Trabalho para não ter que voltar para casa. Por tanto trabalhar decidiram por me encarregar de tomar conta de uma equipe. Ser promovido no emprego não fez de mim um homem melhor ou ao menos feliz. Para mim um estorvo a mais. Preferia estar morto. Não morri. Vivo como viveu minha mãe: eternamente preso em minha viuvez.

Passo os dias sonhando viver outra vida que não a minha, onde ela estivesse viva. Viveríamos juntos num lugar igual ao sitio de seu pai. E se eu fosse meu pai? Poderia eu casar de novo, como poderia? Quem iria se interessar por esse pau d’agua, morto vivo? Que será da minha vida quando ou for velho?"

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 14/09/2023
Código do texto: T7885781
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