Um Sarau em Boituva

UM SARAU EM BOITUVA

O Dr. Rubens, sua bela esposa e a filha nos receberam efusivamente no estacionamento de seu imponente sobrado. Estávamos ali para animar a festa de aniversário de casamento com música ao vivo. A casa era uma soberba construção moderna com gramados e jardins por onde circulavam ou se juntavam, naquele momento, parentes, agregados e amigos dos anfitriões. Cinco integrantes compunham o conjunto musical: Aramís, o líder, cantava com a voz de Nelson Gonçalves e quem o ouvisse sem nunca o ter visto, teria a certeza de que o Rei do Rádio era um dos convidados. O de mais idade, cabeça branca, Tião Pirata — apelido atribuído a ele por ter uma prótese de madeira no lugar de uma das pernas — tocava violão. Achava-se o máximo no uso exagerado dos baixos, atacando as cordas com sua dedeira de tortex e arranhando o tampo do instrumento com suas unhas grossas como garras. Era ele quem comandava o andamento das melodias, uma vez que não havia partituras e eram todos amadores. No cavaquinho, de olhos fechados, como se estivesse em transe, apresentava-se o Joca do Cavaco. Tinha o Massaroca no pandeiro, com seu bigodinho dos anos cinquenta, seu chapéu Fedora preto de abas estreitas e seu sorriso sem dentes. O mais concentrado e quieto era o Magrelão que marcava o ritmo no couro de seu tantam atravessado no colo como se estivesse sovando carinhosamente as nádegas de uma mulher. Eu havia feito amizade com esses camaradas no boteco que frequentávamos nas tardes de sexta-feira em nosso bairro. Depois, em minha caminhonete, passei a levá-los com todo o equipamento de som para tocar em bares das cidades vizinhas e, de vez em quando, pegava meu violão, somava-me ao grupo e caprichava nas harmonias para os solos e cantos. Era um toque muito mais suave com a polpa dos dedos nas inversões mais próximas da boca do instrumento e que valorizava as composições de Adelino Moreira, Capiba, Herivelto Martins e outros. Isso causou, acho, um ressentimento dissimulado por parte do outro violonista que fazia de tudo para boicotar a minha atuação nas interpretações de Aramís e os solos do Joca. Nesse dia do sarau em casa do Dr. Rubens a coisa desandou de vez. No sábado, noite fria de junho, depois de termos compartilhado doces caseiros, bolos diversos e canecas de chocolate quente, fomos instalados na ampla sala de sofás brancos da rica residência para nossa função. Aramís, postando-se elegantemente de pé à frente de todos, fez a costumeira introdução: cumprimentou os presentes, agradeceu o convite, apresentou-nos e desejou a todos uma noitada de alegre confraria, tudo recitado ao som pianíssimo de “Minhas Mãos no Cavaquinho” de Waldir Azevedo, canção prelúdio de nossa participação. Seguiu-se uma seleção de sambas bem marcados de pandeiro e atabaque e no final da última música duas cordas do violão do Tião Pirata romperam simultânea e inexplicavelmente. Fingindo humildade, pediu-me o meu emprestado e encerrou assim, naquela noite, a minha presença musical no grupo. Ausentei-me da roda de samba, aborrecido, e dirigi-me ao salão de jogos a busca de parceiros para sinuca. No almoço de domingo, os anfitriões ofereceram aos convivas um lauto churrasco com muita cerveja, vinhos e uísque dos bons. Nos bastidores consegui com um dos empregados da casa o sol e o si, entreguei-as ao Tião e resgatei de suas mãos rudes o meu violão já riscado de suas unhas ásperas e inflexíveis. Percebi um ar de desagrado em seu semblante enquanto se afastava para substituir as cordas quebradas, mas nada comentei. À tarde, novamente nos reunimos para tocar e cantar. Outra vez os dois violões disputavam a preferência dos ouvintes e do cantor. Tião Pirata não conseguia disfarçar o ódio que nutria por mim, e eu, não menos hostil, desejava que sua perna de pau se consumisse em cupins. E assim foi por várias horas, sem que as pessoas que estavam ali para se divertir se dessem conta da animosidade que havia entre nós. Na canção de encerramento era costume o velho dar um breque no pa-ra-pa-ra-pa-pá, erguer o queixo em direção a um dos músicos para que esse fizesse sua performance particular. O pandeirista fez bonito rolando o instrumento ao longo do braço, girando-o na ponta do dedo indicador, voltando a bater com a mão sobre o couro de modo gracioso e preciso, sem perder a cadência. Aí foi a vez do joca: ele deu um show de swings rápidos com cortes de palhetadas no meio da sequência de acordes no tom da música em execução. Os circunstantes vibravam de admiração pela genialidade de cada um. Eu havia preparado um solo de pentatônica à moda de Jimmy Page com vários bends e slides e esperava ansioso pela minha deixa. Mas a vez foi dada ao Magrelão com suas batidas ensaiadas e repiques de mão no tantam. Bem agora eu era o último. Mas o velhaco deu a chance para um sapo de fora com milho dentro de uma lata de cerveja e após esse chacoalhar que mais parecia o guizo de uma cascavel, encerrou a demonstração, exibindo-se ele próprio com seu desempenho no violão. Aí olhou para minha cara de frustração e sorriu de puro deboche.

Humilhado, saí discretamente da sala, apanhei minhas coisas, coloquei-as na caminhonete e os deixei lá, a mais ou menos cento e trinta quilômetros de casa. Nunca mais estive com eles. Fiquei sabendo tempos depois que o velho Tião Pirata tinha adoecido e falecido. Não guardo rancor e espero que sua morte não tenha sido de cupim na perna.

HFigueira
Enviado por HFigueira em 05/07/2019
Reeditado em 06/07/2019
Código do texto: T6689063
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