Pelotinha e o bulling
 
          E claro que Pelotinha jamais ouvira alguém mencionar a palavra bulling. Isso é coisa moderna. Para começar não tinha isso de levar desaforo pra casa pra contar pra mãe ou pro pai. Se o fizesse corria o risco de ser mal compreendido e ainda ser ameaçado de levar surra pra largar de ser brigão ou covarde. Tinha que aprender a dar conta de seus próprios problemas. Gordinho e de óculos via-se amiúde alvo de chacotas: “Rapa daí pançudo, cinco-olho, dois de carne, dois de vidro e um fedido”. No curso de admissão ao ginásio saía discretamente, quase sempre correndo, desviando de turmas hostis, procurando rotas alternativas de fuga para chegar em casa. Dia sim dia não tinha alguém querendo pegá-lo na saída.  Um dia resolveu encarar. O japonês era mirrado, menor que ele. Os colegas fomentavam a rixa só porque, sem querer, esbarrara na mesa e derrubara o material escolar do japonês. Pelotinha, tremendo de medo, esperou-o após as aulas. Formou-se a torcida a favor do japonesinho. Pelotinha não tinha nenhuma torcida, a não ser contra. Riscou-se o chão. “Se for homem, atravesse a linha” – desafiou o japinha. Pelotinha avançou, atracou-se com ele e caíram os dois: Pelotinha com todo seu peso em cima do oponente. Mas logo estava por baixo levando soco na cara sob as vaias dos meninos e meninas em volta deles. Apanhara de novo.
 
          Pelotinha ganhava seu próprio dinheiro juntando e vendendo material reciclável e fazendo carreto na feira. Aos domingos ia ao cinema na sessão da tarde e colecionava gibis. Seu herói favorito era O Fantasma. Um dia o Sr. Walker (O Fantasma em trajes normais, de sobretudo xadrez, chapéu e óculos escuros) passava pela rua e viu um garoto sentado na sarjeta, choroso porque, como Pelotinha, era gordo, usava óculos e era saco de pancadas dos marmanjos. Com autorização dos pais, o herói levou-o para a Caverna da Caveira e lá o menino aprendeu a se defender com os pigmeus e com o próprio Fantasma. Aprendeu que todo valentão no fundo é covarde, aprendeu sobre respeito ao próximo e injustiça. Emagreceu comendo muitas frutas e verduras e ganhou uma cor bronzeada caçando, pescando e brincando ao sol com os nativos. Na volta da selva enfrentou com coragem e habilidade o moleque mais temido da rua, venceu-o e passou a proteger os mais fracos daqueles que insistiam em abusar deles. Pelotinha sonhava que era ele esse menino hospedado pelo Fantasma na selva de Bengala. Mas a realidade era bem outra. Mais tarde, já na primeira serie do ginásio teve de enfrentar outra situação difícil. O professor de educação física exigia que ele atravessasse o corredor do inferno – era como se chamava o corredor polonês – por não ter sido capaz de fazer corretamente os exercícios físicos do treino. Injustiça. Ele fizera o melhor que pôde. Revoltado, recusou-se a obedecer. Imediatamente os mais afoitos insistiam com o professor para que os deixassem pegá-lo na marra. Pelotinha viu a viola em caco. Correu para um canto da quadra cercada de balaústres de madeira e apossou-se de um dos sarrafos soltos. Dois ou três já se aproximavam para agarrá-lo mesmo sem a autorização do professor. Lembrou-se da história em quadrinhos de anos atrás. Devagar e decididamente disse em voz alta: “Meto esse sarrafo com prego e tudo na cabeça do primeiro filho-da-puta que vier me agarrar”. Estacaram. O professor disse deixa pra lá. Mais tarde foi levado à presença do diretor e tomou três dias de suspensão por desacato ao mestre e por ter dito palavrões durante a aula de educação física. Mas estava feliz. Sentia-se bem. Tivera coragem. Impusera-se. Tanto que os veteranos não o aborreceram com aquela mania de jogar os novatos na moita de espinhos. Entretanto, fez a segunda e a terceira séries solitário e discriminado pelas turmas que se formavam naturalmente no início da adolescência. 
 
          Um dia a mãe anunciou que um tio viria morar com eles e que teria que compartilhar o quarto. O tio lutava boxe amador e precisava de alguém para  praticar. Ensinou-lhe a postura de defesa, a movimentação de pernas e a aplicação de golpes bem colocados e, principalmente, treinou-o a combinar jabs, hooks e uppers, fazendo vantagem a sua atarracada compleição física. Pelotinha descobriu com a ajuda do tio que tinha muita força nos braços. Ganhou dele dois pares de luvas usadas que passaram a fazer parte de seu material escolar. No ginásio, convidou os colegas a formarem pares para lutar. A regra era simples: quem caísse perdia a luta. Se ninguém caísse até o relógio marcar três minutos, a luta estava empatada. O ringue era o círculo de estudantes em volta dos contendores. Logo começaram a aparecer os favoritos. O boxe tornou-se a atração principal do recreio. Pelotinha emprestava as luvas e observava o estilo de cada um. Os colegas já o instigavam a lutar, uma vez que era o dono das luvas. Aceitou o desafio de um dos favoritos. O round durou menos de um minuto entre tentativas e defesas de ambos os lados até que o desafiante mandou um direto com toda a gana de acertá-lo. Pelotinha desviou do golpe com um meneio de corpo, um jogo de cintura, e com um cruzado de direita desequilibrou o oponente que foi ao chão com o próprio impulso. Depois desse dia ganhou de todos os favoritos menos de um deles, muito maior, forte, japonês, jogador de beisebol. Com ele levava alguns socos imprecisos, dava outros inofensivos e empatava sempre. Um dia deu sorte. Pelotinha viu, livre como um saco de treinamento, o queixo do japonês. Sem muito pensar, os pés bem plantados, o upper subiu com força total, escorado pelo peso do corpo, um bólido entre as luvas do rival. O imenso japonês caiu para trás, surpreso, os braços abertos, as costas na poeira do chão. Rito de passagem. Finalmente, Pelotinha ganhou respeito. Fora aceito no grupo. As meninas o convidavam para as domingueiras dançantes e festinhas de aniversários. Os colegas de classe incluíam-no em suas eventuais brincadeiras e traquinagens. Participava entre os veteranos que ficavam até altas horas conversando sobre jogos e meninas junto à fonte luminosa da praça central da cidade. Deu de presente as luvas já bem gastas e nunca mais precisou lutar com alguém para sentir confiança em si mesmo.
 
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HFigueira
Enviado por HFigueira em 07/05/2012
Reeditado em 09/11/2014
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