A JARDINEIRA
(A meu pai, um sábio sem letras, um amigo sem restrições)
Diariamente, o gemido plangente e familiar do motor da velha jardineira confundia-se com a cantilena da passarada desperta de recém nas árvores e invadia a quietude das cercanias, propagando-se sobre os extensos cafezais e embrenhando-se nos capuões de mata virgem que ladeavam a estrada esburacada e poeirenta. Nas cabeceiras das ruas de café, caboclos descansavam a enxada, endireitavam o espinhaço dolorido, erguiam o chapéu de palha e, enquanto limpavam o suor da testa com as costas da mão, sorriam um sorriso de dentes amarelos de fumo para a jardineira que descambava na ladeira do Quebra-Côco, deixando para trás um tornado de pó vermelho. Somente quando a capota azul passava rente ao barranco do eito e afundava depois atrás de uma lomba, os roceiros cuspiam nas mãos calosas e tornavam a vergar sobre o cabo seco de guatambu.
Aquele som mecânico sumindo nas lonjuras deixava-os matutando. Os meninos mais crescidos pensavam no imenso sanduíche de pão francês com mortadela que comeriam — “regala-zóio” fora o lanche denominado pelo Paulão, filho do dono do bar — acompanhado de um bom litro de guaraná, isso quando a fome apertasse, após andarem à-toa pelas três avenidas da cidadezinha, vestidos em calças rancheiras e botinas de couro cru, das rangedeiras.
Os moços sonhavam com a procissão das garotas da cidade. Elas costumavam passear na rua principal e eles ficavam nas calçadas, em ambos os lados, perfilados, tímidos, formados em alas, observando-as naquele vai-e-vem incansável. A cada vez que iam ou vinham, aqui e ali, alguém flertava com alguém. Talvez, quando olhares se cruzassem novamente, haveria de haver um deles, corajoso o bastante, para arrojar uma palavra mais afoita ou ousar um gesto mais atrevido. E se a sessão de cinema não findasse antes, posto que o The End do filme marcasse também o fim da ciranda, quem sabe, a eleita não se deixaria levar pelas alamedas secundárias até um dos bancos do jardim da praça central para uma primeira conversa. Ah, que momento terrível esse! Havia aqueles que não cavavam desembaraço de esboçar uma única palavra e, pior, alguns perdiam de vez a chance de namorar a menina. Entretanto, para a sorte da maioria, inconsciente do fato de que eram elas que os escolhiam, sempre havia uma estratégia feminina que os fariam crer na promessa de um novo encontro para o sábado seguinte e aí então haveria tempo para praticar no espelho ou com as vacas do sítio algumas frases infalíveis.
Já a preocupação dos homens casados eram bem outras: levar o rodo de capinar, trincado, até a Oficina Flórida para soldagem com carbureto e oxigênio, não esquecer de comprar o vidro de Biotônico Fontoura para a Mariinha — “tadinha, tão fraquinha! Difícil de vingar”. Se sobrasse tempo após as compras na Casa Fujii haveria revanche de bocchia no Bar do Rufino. Como a vida podia ser fácil e bela com algumas cachaças na ideia, apetitosas porções de peixe pescado no Córrego Santa Maria e bons amigos empenhados em vencer a outra dupla na mesa de sinuca!
Matutavam. O suor pingando e ensopando a camisa, iam carpindo a erva daninha de seus eitos e sonhando com o sábado. Todos ansiavam pelo sábado.
A jardineira sempre levaria os que quisessem ou precisassem ir, fossem quantos fossem. Fora fabricada em 1946, doze anos atrás. No documento constava como cor predominante o amarelo, mas eram azuis os lados da coberta onde se lia em letras brancas: Expresso Santa Luzia. Os bancos de madeira atravessavam a largura do veículo. Não havia corredor. Era aberta e tinha estribos laterais, feito os bondes da capital. As mulheres viajavam sentadas levando seus filhos no colo, os homens iam como pudessem: ora pingentes nas colunas, ora acocorados no bagageiro sobre o teto do ônibus entre engradados de galinhas, cestos de ovos, sacos, malas e toda a sorte de bugigangas. Quando não, iam pendurados nas duas escadas que davam acesso ao topo da condução. A jardineira percorria aquelas quinze léguas entre a cidade de Flórida Paulista e a Fazenda Perobal havia muitos anos. Era o único transporte público que unia aquela infinidade de sítios e fazendolas recém-abertas na alta zona da mata à florescente cidadezinha paulista.
Meu pai adquirira a jardineira e a linha, motivado pela esposa e filhos. O sonho de construir um futuro na capital estava desfeito. Ali era apenas mais um escravo entre milhares que haviam migrado de suas origens rurais. Foi com suspiros de alívio de minha mãe e gritos de alegria da molecada que deixamos a casa que havíamos construído, tijolo por tijolo, ao longo dos anos, em muitos feriados, dias santos e domingos esfumaçados da zona leste da capital, de volta para o interior. Interior! Essa palavra soava a meus ouvidos como sendo o nome do paraíso, tanto eu a ouvia de meus pais, a narrarem, saudosos, a vida que tinham tido antes de embarcarem na ilusão de melhores dias na cidade grande.
Perdemos na viagem a velha bacia de tomar banho e meu cachorro Conde. Somente depois de vinte horas de caminhão, nossa pobre mobília, agora também toda arrebentada, era descarregada e levada para dentro de uma casa de madeira, grande e sombria, cujo chão arenoso cheirava a ratos e era coberta por um telhadão de duas águas, escurecido de picumã e do fumo do fogão de lenha. Conosco viera também o Sebastião, um afilhado de meu pai, rapaz de seus dezessete anos, muito dado às safadezas das malocas paulistanas. Tinha sido confiado ao padrinho para que aprendesse a trabalhar e a viver como gente decente.
Pela hora do almoço de um dia quente e brilhante — tão diferente dos dias turvos da Vila Matilde — a posse da jardineira foi transferida para meu pai. Assim, tendo meu pai ao volante e um novo cobrador: o primo Bastião, logo apelidado de “Cobra”, por volta das quinze horas, saíamos — também eu — nessa primeira viagem. A jardineira partia absolutamente lotada, por dentro e por fora e meu pai procurava seguir a risca os conselhos do antigo dono: na descida da Fazenda Santana, a mais ou menos uma légua da cidade, era preciso soltar o veículo na banguela ou se correria o risco de não dar conta de subir o tope do outro lado, o mais íngreme do percurso. Era um momento de extrema expectativa. Havia risos de prazer, frases de incentivo e gritos de medo enquanto o veículo ganhava velocidade na livre aceleração estrada abaixo. Começava o longo aclive A mão esquerda firme na direção, a outra na alavanca do câmbio, os pés prontos para a sincronia dos pedais. Noventa, oitenta, setenta, e era o momento de voltar a quarta marcha. O motor substituía o impulso da força da gravidade quase que imperceptivelmente. Movimentos rápidos, ação no pedal da embreagem, alavanca em ponto-morto, segunda bombeada, entrava a terceira e logo em seguida, com a mesma perícia, a segunda marcha era engrenada. Já estamos quase lá em cima. A transmissão emite um som contínuo, prolongado, como um choro lamentoso e sentido. O motor parece querer sucumbir. A cabeça da alavanca de marchas começa a tremer produzindo um zunido estridente. O instante crucial se aproxima. Primeira bombeada, ponto-morto. Há um momento de total imobilidade, de silêncio, de respirações contidas, segunda bombeada, entra a primeira marcha, justa, precisa, exata. O motor urra, o eixo-cardã gira devagar, em solavancos, as rodas traseiras respondem ao movimento das engrenagens no diferencial. As pontas de eixo aguentam os trancos mais uma vez. Há um alívio geral quando o motorista estica a primeira marcha apenas para estacionar na cota mais alta da região, a porteira da Fazenda Santana: primeira parada. As despedidas dos passageiros eram demoradas e calorosas, com muito obrigado, aperto de mãos e tapinha nas costas do motorista e cobrador.
Bem rápido se fortaleceu a amizade entre os usuários da jardineira e nós, ex-forasteiros, ao longo do caminho. Era quase com tristeza que víamos descer os últimos viajantes no derradeiro ponto já na quieteza do arruado de nome Perobal. A equipe passara no teste. Fôramos aceitos.
(A meu pai, um sábio sem letras, um amigo sem restrições)
Diariamente, o gemido plangente e familiar do motor da velha jardineira confundia-se com a cantilena da passarada desperta de recém nas árvores e invadia a quietude das cercanias, propagando-se sobre os extensos cafezais e embrenhando-se nos capuões de mata virgem que ladeavam a estrada esburacada e poeirenta. Nas cabeceiras das ruas de café, caboclos descansavam a enxada, endireitavam o espinhaço dolorido, erguiam o chapéu de palha e, enquanto limpavam o suor da testa com as costas da mão, sorriam um sorriso de dentes amarelos de fumo para a jardineira que descambava na ladeira do Quebra-Côco, deixando para trás um tornado de pó vermelho. Somente quando a capota azul passava rente ao barranco do eito e afundava depois atrás de uma lomba, os roceiros cuspiam nas mãos calosas e tornavam a vergar sobre o cabo seco de guatambu.
Aquele som mecânico sumindo nas lonjuras deixava-os matutando. Os meninos mais crescidos pensavam no imenso sanduíche de pão francês com mortadela que comeriam — “regala-zóio” fora o lanche denominado pelo Paulão, filho do dono do bar — acompanhado de um bom litro de guaraná, isso quando a fome apertasse, após andarem à-toa pelas três avenidas da cidadezinha, vestidos em calças rancheiras e botinas de couro cru, das rangedeiras.
Os moços sonhavam com a procissão das garotas da cidade. Elas costumavam passear na rua principal e eles ficavam nas calçadas, em ambos os lados, perfilados, tímidos, formados em alas, observando-as naquele vai-e-vem incansável. A cada vez que iam ou vinham, aqui e ali, alguém flertava com alguém. Talvez, quando olhares se cruzassem novamente, haveria de haver um deles, corajoso o bastante, para arrojar uma palavra mais afoita ou ousar um gesto mais atrevido. E se a sessão de cinema não findasse antes, posto que o The End do filme marcasse também o fim da ciranda, quem sabe, a eleita não se deixaria levar pelas alamedas secundárias até um dos bancos do jardim da praça central para uma primeira conversa. Ah, que momento terrível esse! Havia aqueles que não cavavam desembaraço de esboçar uma única palavra e, pior, alguns perdiam de vez a chance de namorar a menina. Entretanto, para a sorte da maioria, inconsciente do fato de que eram elas que os escolhiam, sempre havia uma estratégia feminina que os fariam crer na promessa de um novo encontro para o sábado seguinte e aí então haveria tempo para praticar no espelho ou com as vacas do sítio algumas frases infalíveis.
Já a preocupação dos homens casados eram bem outras: levar o rodo de capinar, trincado, até a Oficina Flórida para soldagem com carbureto e oxigênio, não esquecer de comprar o vidro de Biotônico Fontoura para a Mariinha — “tadinha, tão fraquinha! Difícil de vingar”. Se sobrasse tempo após as compras na Casa Fujii haveria revanche de bocchia no Bar do Rufino. Como a vida podia ser fácil e bela com algumas cachaças na ideia, apetitosas porções de peixe pescado no Córrego Santa Maria e bons amigos empenhados em vencer a outra dupla na mesa de sinuca!
Matutavam. O suor pingando e ensopando a camisa, iam carpindo a erva daninha de seus eitos e sonhando com o sábado. Todos ansiavam pelo sábado.
A jardineira sempre levaria os que quisessem ou precisassem ir, fossem quantos fossem. Fora fabricada em 1946, doze anos atrás. No documento constava como cor predominante o amarelo, mas eram azuis os lados da coberta onde se lia em letras brancas: Expresso Santa Luzia. Os bancos de madeira atravessavam a largura do veículo. Não havia corredor. Era aberta e tinha estribos laterais, feito os bondes da capital. As mulheres viajavam sentadas levando seus filhos no colo, os homens iam como pudessem: ora pingentes nas colunas, ora acocorados no bagageiro sobre o teto do ônibus entre engradados de galinhas, cestos de ovos, sacos, malas e toda a sorte de bugigangas. Quando não, iam pendurados nas duas escadas que davam acesso ao topo da condução. A jardineira percorria aquelas quinze léguas entre a cidade de Flórida Paulista e a Fazenda Perobal havia muitos anos. Era o único transporte público que unia aquela infinidade de sítios e fazendolas recém-abertas na alta zona da mata à florescente cidadezinha paulista.
Meu pai adquirira a jardineira e a linha, motivado pela esposa e filhos. O sonho de construir um futuro na capital estava desfeito. Ali era apenas mais um escravo entre milhares que haviam migrado de suas origens rurais. Foi com suspiros de alívio de minha mãe e gritos de alegria da molecada que deixamos a casa que havíamos construído, tijolo por tijolo, ao longo dos anos, em muitos feriados, dias santos e domingos esfumaçados da zona leste da capital, de volta para o interior. Interior! Essa palavra soava a meus ouvidos como sendo o nome do paraíso, tanto eu a ouvia de meus pais, a narrarem, saudosos, a vida que tinham tido antes de embarcarem na ilusão de melhores dias na cidade grande.
Perdemos na viagem a velha bacia de tomar banho e meu cachorro Conde. Somente depois de vinte horas de caminhão, nossa pobre mobília, agora também toda arrebentada, era descarregada e levada para dentro de uma casa de madeira, grande e sombria, cujo chão arenoso cheirava a ratos e era coberta por um telhadão de duas águas, escurecido de picumã e do fumo do fogão de lenha. Conosco viera também o Sebastião, um afilhado de meu pai, rapaz de seus dezessete anos, muito dado às safadezas das malocas paulistanas. Tinha sido confiado ao padrinho para que aprendesse a trabalhar e a viver como gente decente.
Pela hora do almoço de um dia quente e brilhante — tão diferente dos dias turvos da Vila Matilde — a posse da jardineira foi transferida para meu pai. Assim, tendo meu pai ao volante e um novo cobrador: o primo Bastião, logo apelidado de “Cobra”, por volta das quinze horas, saíamos — também eu — nessa primeira viagem. A jardineira partia absolutamente lotada, por dentro e por fora e meu pai procurava seguir a risca os conselhos do antigo dono: na descida da Fazenda Santana, a mais ou menos uma légua da cidade, era preciso soltar o veículo na banguela ou se correria o risco de não dar conta de subir o tope do outro lado, o mais íngreme do percurso. Era um momento de extrema expectativa. Havia risos de prazer, frases de incentivo e gritos de medo enquanto o veículo ganhava velocidade na livre aceleração estrada abaixo. Começava o longo aclive A mão esquerda firme na direção, a outra na alavanca do câmbio, os pés prontos para a sincronia dos pedais. Noventa, oitenta, setenta, e era o momento de voltar a quarta marcha. O motor substituía o impulso da força da gravidade quase que imperceptivelmente. Movimentos rápidos, ação no pedal da embreagem, alavanca em ponto-morto, segunda bombeada, entrava a terceira e logo em seguida, com a mesma perícia, a segunda marcha era engrenada. Já estamos quase lá em cima. A transmissão emite um som contínuo, prolongado, como um choro lamentoso e sentido. O motor parece querer sucumbir. A cabeça da alavanca de marchas começa a tremer produzindo um zunido estridente. O instante crucial se aproxima. Primeira bombeada, ponto-morto. Há um momento de total imobilidade, de silêncio, de respirações contidas, segunda bombeada, entra a primeira marcha, justa, precisa, exata. O motor urra, o eixo-cardã gira devagar, em solavancos, as rodas traseiras respondem ao movimento das engrenagens no diferencial. As pontas de eixo aguentam os trancos mais uma vez. Há um alívio geral quando o motorista estica a primeira marcha apenas para estacionar na cota mais alta da região, a porteira da Fazenda Santana: primeira parada. As despedidas dos passageiros eram demoradas e calorosas, com muito obrigado, aperto de mãos e tapinha nas costas do motorista e cobrador.
Bem rápido se fortaleceu a amizade entre os usuários da jardineira e nós, ex-forasteiros, ao longo do caminho. Era quase com tristeza que víamos descer os últimos viajantes no derradeiro ponto já na quieteza do arruado de nome Perobal. A equipe passara no teste. Fôramos aceitos.