A Carta de Pero Vaz de Caminha: estudo dos pronomes pessoais em duas edições
INTRODUÇÃO
O surgimento da escrita é um divisor de águas na História da humanidade. O desenvolvimento da escrita cumpre muitas funções sociais, dentre as quais a de maior destaque é a política. A comunicação entre os povos e a evolução da economia, por exemplo, beneficiaram-se sobremaneira desse aspecto da escrita.
A escrita, seja ela qual for, sempre foi uma maneira de representar a memória coletiva religiosa, mágica, científica, política, artística e cultural. A invenção do livro e sobretudo da imprensa são grandes marcos da História da humanidade, depois é claro, da própria invenção da escrita. Esta foi passando do domínio de poucas pessoas para o do público em geral e seu consumo é mais significativo na forma de leitura do que na produção de textos. (CAGLIARI, 2010:97)
A circulação de ideias como apontado por CAGLIARI (2010) viabiliza-se enquanto escrita entendida como modo de leitura. Esse aspecto favoreceu o florescimento e a manutenção das relações entre colônia e metrópole que se estabeleceu nesse período. Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo analisar duas edições da carta de Pero Vaz de Caminha – considerada a certidão de nascimento do Brasil, a primeira edição exemplifica o que TEYSSIER (1982) denomina português clássico e BECHARA (2004) português arcaico médio . A segunda edição está escrita em português contemporâneo em ambos referidos autores. Para fins deste artigo, utilizar-se-ão as terminologias: português arcaico e português contemporâneo.
Em um primeiro momento, apresenta-se de forma panorâmica o contexto histórico e cultural em que se deu a produção da carta a fim de situar o leitor no período que ficou conhecido como grandes navegações.
Em seguida, comenta-se a carta de Pero Vaz de Caminha à luz de MARTINS (2005) e breve apresentação de alguns aspectos lexicais e gramaticais da carta MARTINS (2005).
Por fim, elegeu-se para esse trabalho para fins de análise linguística mais detalhada a utilização de pronomes pessoais nas duas edições da carta. Ao longo do trabalho, serão apresentadas algumas justificativas para a escolha dessa categoria específica de pronomes em detrimento de outras.
2.0 O NOVO MUNDO
A descoberta do Novo Mundo pelos espanhóis e portugueses se deu através de um longo processo de transição histórica da Idade Média à Idade Moderna. É nesse período que há maior centralização política em termos de formação de Estados, uma vez que antes como nos explica COTRIM (2013:244) “(...) a Europa dividia-se em diversos reinos. Em cada reino, o poder era político era partilhado entre os grandes senhores feudais e o governo das cidades medievais autônomas (...) não havia, portanto, um poder ou autoridade central”. Nesse sentido, um projeto de expansão ultramarina somente podia se desenvolver sob a égide de um poder coeso.
É saliente ressaltar que esse processo de formação dos Estados nacionais não se deu em uma direção única (Alemanha e Itália são unificadas no século XIX, por exemplo). A centralização político-administrativa de Portugal. Isso deu de forma contundente já no final da Idade Média.
2.1. AS GRANDES NAVEGAÇÕES
O período histórico no qual a carta está inserida pode ser analisado através de variadas inscrições historiográficas, tais como: expansão ultramarina, Renascimento, Humanismo, movimentos de reforma e contrarreforma religiosas COTRIM( 2013). A expansão ultramarina é a de maior expressão. Segundo NETO (1970:443)
Portugal emergia da Idade Média para o século maravilhoso da sua história. Os primeiros anseios da alma portuguêsa e os primeiros sonhos de D. Henrique frutificavam, enfim, nas mãos venturosas de D. Manuel. A pequena casa lusitana despovoa-se em busca de mundos novos e de novas humanidades. O que isso representa é de importância transcendental na história da civilização. Portugal nasceu e cresceu sob o signo do mar.
Nesse sentido, Portugal foi pioneiro durante o período das grandes navegações. O advento de novas técnicas de navegação, a formação de uma burguesia aliada ao Estado possibilitou que mais territórios fossem anexados ao projeto de colonização portuguesa à medida que a economia\ se fortalecia em diferentes pontos do continente. Como nos explica MARTINS (2005:9)
O período de 1500 foi marcado pelas grandes navegações. Nesta época o continente europeu, particularmente, portugueses, espanhóis, italianos, realizava navegações em direção ao oriente. A Europa ansiava pela conquista das Índias e suas riquezas, as tão desejadas especiarias. Portugal dominava este período de navegações, no início do século XV tornou-se centro de estudos de navegação com estímulo do Infante D.Henrique, o grande impulsionador dos descobrimentos, que fundou, entre 1416 e 1419, uma vila no promontório Sacrum, já conhecido pelos romanos, hoje, Sagres, onde estabeleceu uma escola de cosmografia e navegação que teve por principal missão, conhecer as terras do ocidente, além, claro da chegada às Índias. D. Henrique projetava atacar os mouros no oriente, na origem do próprio comércio que os enriquecia, fazer pelo Atlântico esse comércio nos navios de Portugal, tornar Lisboa o empório das apreciadas especiarias.
Vários fatores elevaram Portugal à categoria de pioneirismo quanto à expansão marítima. Portugal com o fito de aumentar a riqueza da coroa conciliado às aspirações da burguesia aproveitou que os países ao seu redor encontravam-se em guerra (Espanha com a expulsão dos mouros com Inglaterra e França envolvida na guerra dos cem anos). Vale ressaltar que a conquista de Ceuta um marco para o início da expansão portuguesa. Além disso, outros fatores elencados por COTRIM (data) foram de crucial relevância: posição geográfica privilegiada, criação da escola de Sagres, navegadores experientes, utilização da Caravela como embarcação propícia a captar a força eólica, bússola, cartografia etc. formam primordiais para o auxílio à navegação e o alcance por terras novas e distantes.
3.0 A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
A carta de Pero Vaz de Caminha nasce em uma expedição que Portugal realiza às Índias. Segundo Martins (2005), Os lucros trazidos pela viagem de Vasco da Gama em 1498 incentivaram a viagem comandada por Pedro Álvares de Cabral com cerca de 1500 soldados e diversos membros da nobreza.
A viagem de Cabral foi o maior empreendimento náutico que Portugal tinha feito naquela época. Cabral recebera instruções para visitar os reis de Zanzibar e de Melinde, negociar aliança com este, e obter do Samorim autorização para que os frades franciscanos pudessem pregar a fé cristã e licença para o estabelecimento de uma feitoria em Calecute. Dois dos navios deviam ficar em Sofala enquanto os outros seguiriam para a Índia. A finalidade da viagem era montar um entreposto comercial no continente indiano, Cabral levava uma carta para o governante de Calecute dizendo que queria manter boas relações. Iam dispostos a conseguir tudo isto pacificamente, só no caso de não o poderem fazer empregariam a força.
É interessante que apesar de Cabral perder a metade da frota, retorna com cinco navios, em termos comerciais e econômicos a viagem foi um total sucesso, porque os navios retornaram com especiarias trazidas do Oriente que deram para pagar toda a despesa desse empreendimento.
O trecho abaixo é parte da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel. Diz-se ser aí o início da literatura brasileira, vide o caráter informativo da cultura com a qual a tripulação de Cabra deparou-se ao aportar na nova terra. Datada de Porto Seguro, no dia 1º de Maio de 1500, foi levada a Lisboa por Gaspar de Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota.
Dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, cerca de sete ou oito, segundo os navios disseram, porque chegaram primeiro. Ali lançamos os batéis e esquifes à água e vieram logo todos os capitães das naves a esta nau do Capitão-mor e ali conversaram. E o Capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio; e quando começou a ir para lá acudiram, à praia, homens, aos dois e aos três. Assim, quando o batel chegou à foz rio estavam ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel e Nicolau Coelho fez-lhes sinal para que deixassem os arcos e eles os pousaram. Mas não pôde ter deles fala nem entendimento que aproveitasse porque o mar quebrava na costa.
Segundo alguns teóricos da literatura, é aqui que a literatura brasileira tem início, como já foi dito. E por isso da escolha do texto. Diferente do que costumamos lidar como sendo literatura, encontramos aqui uma carta com caráter totalmente informativo. (BOSI: 2006, p.14)
De acordo com Silvio Castro apud Martins (2005), a ortografia da carta é fonética – típica da escrita portuguesa até o século XV. No texto original da carta, não se encontra a segmentação comum do português contemporâneo, o que reflete muitas vezes uma escrita similar a crianças em período de alfabetização onde os limites entre vocábulo fonológico e formal não são precisos. Historicamente, a primeira gramática da língua portuguesa – Grammatica de lingoagem portuguesa – de Fernão de Oliveira teve sua primeira edição em 1535. No entanto, Silva (1996) aponta uma escrita com a mesma segmentação da fala em outros textos seiscentistas, ou seja, palavras átonas apoiam-se nas palavras tônicas.