Tempo de brincar - o pretérito imperfeito
TEMPO DE BRINCAR: O PRETÉRITO IMPERFEITO
José Augusto Carvalho*
O pretérito imperfeito do indicativo é normalmente estudado como um tempo passado de ação incompleta, com aspectos vários: durativo (“Havia um ano que ele morava ali.”), progressivo ou cursivo (“Em 1910, ele estudava no Colégio de Jesuítas.” “A natureza quedava-se imóvel.”), iterativo (“Ele se ajoelhava sempre que passava diante do altar-mor.”) e imperfectivo (“Ele celebrava a missa quando ocorreu a explosão.”).
Harald Weinrich, num livro de 1968, traduzido nesse mesmo ano para o espanhol e publicado pela Gredos, de Madrid, com o título Estructura y función de los tiempos en el lenguaje (capítulo Mundo comentado – Mundo narrado, p.61-136), estabeleceu três dimensões do sistema temporal: 1. a atitude comunicativa; 2. a perspectiva comunicativa; e 3. o relevo.
1. A atitude comunicativa – A atitude comunicativa classifica-se em narrativa e em comentadora, à semelhança da dicotomia narração/discurso, de Benveniste (Les relations de temps dans le verbe français. In: ---.Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966, vol. I, p. 237-250). Em “Carlos está muito magro. Precisa alimentar-se”, temos o discurso, o mundo comentado (Besprochene Welt). Em “José tomou café e morreu”, temos uma narração, o mundo narrado (Erzählte Welt). Uma narrativa é aqui definida, segundo Wiliam Labov (Language in the inner city – Studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1975, cap. 9 – The transformation of experience in narrative syntax, p. 359-360) como a sucessão de pelo menos dois fatos ligados por um fator tempo, de tal modo que a inversão desses fatos altera a interpretação semântica original. No exemplo dado (“José tomou café e morreu.”), a inversão dos fatos (José morreu e tomou café) significa outra narrativa (uma narrativa extraordinária, como a de Érico Veríssimo, em Acidente em Antares, em que os mortos se recusam a aceitar que estão mortos, ou como a de Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, em que um morto escreve suas memórias). Já na frase “José morreu tomando café”, não há narrativa, porque os dois fatos podem ter sua ordem alterada (“Tomando café, José morreu”) sem que haja mudança da interpretação semântica original. Os tempos do mundo narrado são, basicamente, o mais-que-perfeito, o aoristo (correspondente ao “passé simple” francês) e o futuro do pretérito. Os do mundo comentado são o perfeito (correspondente ao “passé composé” francês), o presente e o futuro. O imperfeito é comum aos dois mundos.
2. A perspectiva comunicativa —Na perspectiva comunicativa, classificam-se os tempos verbais em tempos sem perspectiva e tempos de prospecção e de retrospecção. Numa narrativa, por exemplo, grosso modo, o pretérito perfeito é o tempo de perspectiva zero (o aoristo ou o “passé simple” francês); o mais-que-perfeito é retrospectivo (um tempo passado completo, anterior a outro tempo passado também completo); e o futuro do pretérito é um tempo prospectivo. O aoristo é o tempo do acontecimento fora da pessoa de um narrador, como se a história se contasse sozinha. Num mundo comentado, grosso modo, o presente é o tempo de perspectiva zero; o pretérito perfeito é retrospectivo (o “passé composé” francês); e o futuro do presente é prospectivo e “implica prescrição, obrigação, certeza, que são modalidades subjetivas, não categorias históricas”(O.c. p. 245). Exemplo: “J’ai fini mon boulot, j’admire ce que j’ai fait, mais je reviendrai demain pour le retoucher.”(Terminei o trabalho, fico admirando o que fiz, mas voltarei amanhã para retocá-lo.) Os advérbios de tempo são traduzidos do mundo comentado para o mundo narrado: “agora, hoje, ontem, amanhã” são “traduzidos” para “naquele momento (então), naquele dia, no dia anterior, no dia seguinte”. Essa classificação dos tempos em mundo narrado e mundo comentado não leva em conta a “metáfora temporal” (cf. El sistema metafórico temporal, p. 137-167, do livro citado de Harald Weinrich) em que, por enálage, um tempo do mundo comentado se usa em lugar de um tempo do mundo narrado e vice-versa, como o presente de narração: “Em 1500, Cabral sai de Portugal e descobre o Brasil.” Ou como o futuro do pretérito de cortesia: “Eu gostaria de pedir-lhe um favor.”
3. O relevo — O relevo aparece em alguns setores do sistema temporal e se divide em dois planos. Examinemos, como exemplo, o seguinte texto: “Era uma vez um rei que tinha duas filhas e vivia feliz no seu reino. Um dia chegou ao reino um viajante cansado que tinha vindo de muito longe.” O imperfeito do indicativo nesse texto é exemplo de relevo de segundo plano: não inicia a narrativa, mas apresenta elementos necessários à sua compreensão. O pretérito perfeito inicia a narrativa: é exemplo de relevo de primeiro plano, junto com o mais-que-perfeito, que indica um tempo retrospectivo.
Ora, o que os estudos em princípio omitem é um emprego do pretérito imperfeito como o tempo das fábulas”. Em seu belíssimo livro Gramática da fantasia (9.ed. São Paulo: Summus Editorial, 1982), Gianni Rodari dedica as páginas finais ao “verbo para brincar”, retomando observações que havia feito no cap. 33: “...imperfeito que as crianças pronunciam quando assumem uma personalidade imaginária, quando entram na fábula, quando terminam os últimos preparativos para a brincadeira. Aquele imperfeito, filho legítimo do ‘era uma vez’ que dá início às fábulas, é um presente especial, um tempo inventado para brincar...”
Para ilustrar o emprego do imperfeito de fantasia, nada melhor que o poema da canção “João e Maria”, de Chico Buarque, de que apresento aqui alguns trechos: “Agora eu era o herói / e meu cavalo só falava inglês./(...) Vem, me dê a mão, / a gente agora já não tinha medo: / no tempo da maldade / acho que a gente nem tinha nascido (...).”
Repare-se que o advérbio “agora”, em suas várias ocorrências no poema, tem o significado de “neste momento”, “presentemente”, reforçando a ideia de que o pretérito imperfeito está aí como um tempo presente, e não como um tempo passado, como bem explicou Gianni Rodari na obra citada.
Espero que esse belo poema inaugure o capítulo esquecido das nossas gramáticas sobre esse emprego maravilhoso do imperfeito do indicativo...
*José Augusto Carvalho é doutor em letras pela USP e autor de vários livros sobre a língua portuguesa, como a Gramática Superior da Língua Portuguesa (2.ed. Brasília, Thesaurus, 2013) e os Pequenos estudos de linguagem (2.ed. São Paulo: Opção, 2022) entre outros.