“Bate um fio que se pá ele cola. [1]” “Soldi nò porta gagiozo, ma giova a menar a vita mais fássile.[2]” “Deixa de pantim que hoje é sexta![3]” “Tinha preteado o olho da gateada, mas depois ficou tri afu.[4]” “A amapoa acuenda seu picomã.[5]

 

(Por Natanael Zotelli*, 31/03/2023)

 

Você conseguiu entender todas essas mensagens?

E se eu te contar que todas essas frases são de dialetos existentes na língua portuguesa do Brasil?! Quem sabe agora fique mais fácil compreendê-las: “Liga que talvez ele venha.” “Dinheiro não traz felicidade, mas ajuda a levar a vida mais fácil.” “Deixa de besteira que hoje é sexta!” “A coisa tinha ficado feia, mas depois ficou legal.” “A mulher admira seu cabelo.”

Como cada uma dessas frases são maneiras de se comunicar em certos grupos dentro do Brasil, você adotaria todas elas em sua comunicação rotineira?

Deixe-me facilitar a sua reflexão... Imagine que você esteja diante da necessidade de falar para um público. Pode ser um professor diante de seus 40 alunos. Entre eles, um ou dois fazem parte de uma comunidade que utiliza um desses dialetos. Você percebe isso e, invocando toda sua habilidade de empatia, trata logo de aprender esse dialeto. Nas próximas aulas, você padroniza o dialeto para ministrar suas aulas, corrigir exercícios e aplicar provas. Tudo em nome da inclusão social, claro!

Ah! Espere um pouco. Talvez esteja se perguntando sobre os outros alunos que não conhecem esse dialeto que você decidiu adotar... Olha, a verdade é que todos devem ser empáticos e mudar completamente sua forma de se comunicar para acolher da melhor forma possível esses um ou dois alunos. Não é mesmo?


Será que existem benefícios nessa estratégia comunicativa? Não vamos fugir da reflexão. Permaneça comigo.

Pelo que se sabe, o sucesso da comunicação, seja escrita seja falada, está na qualidade da recepção da mensagem. Em outras palavras: o meu público-alvo compreendeu bem a minha mensagem? Se sim, a comunicação foi um sucesso. Se não, ela flopou. Desculpe! Se você não sabe o que é flopar, é o mesmo que fracassar.

Está vendo só? O sucesso da comunicação depende, entre outros fatores, do quanto o emissor facilita a recepção da mensagem. Isso vai desde o volume da voz, ritmo de fala, passando pela escolha das palavras até os exemplos para argumentar.

As teorias primordiais dos estudos de linguagens focavam em quase todos os aspectos da produção textual, sem, no entanto, dar atenção ao processo de recepção desses textos. As teorias mais avançadas não menosprezam mais a importância do leitor: quem é o público-alvo? Esse deve ser o primeiro passo ao elaborar um texto inclinado ao sucesso comunicativo.


Como ciência, a Linguística possui ramos especializados e, pertinente a essa prosa aqui, a sociolinguística é o ângulo mais adequado para observarmos a língua a partir das influências de cada sociedade, cujo termo técnico é variações linguísticas.

Até aqui, já mencionamos linguagem, língua e dialeto. Então não custa nada entender esses conceitos, sem nenhum aprofundamento ou rigor teórico, só para não complicar mais as coisas (ou para facilitar a compreensão do leitor).

Linguagem é como se fosse um grande conjunto de ferramentas com as quais os seres humanos trocam informações, ou seja, todas as línguas, dança, música, artes visuais, vestuário, postura, gestos, expressões faciais, sinais de trânsito, inclusive os apitos!

A língua é um subconjunto da linguagem: língua portuguesa, inglesa, espanhola, francesa... E dialeto é só um subconjunto de uma língua. O termo preciso para ele é “variação linguística do tipo diatópica ou diastrática”. Cruzes! Facilitando a recepção da mensagem: é o jeito como as pessoas de certo lugar, ou grupo social, usam uma determinada língua. Ficou melhor?

No Brasil, existem dezenas de dialetos, tanto regionais quanto sociais. Não é só uma questão de sotaque. É mais que isso. O uso do dialeto – assim como o uso de gírias e jargões – exerce um efeito... ele tem o poder de mostrar que o seu usuário faz parte de um determinado grupo. E isso é importantíssimo!

Quem fala “Uai, sô!” e “Capai mêmo!” transmite a informação de que faz parte do grupo regional chamado Minas Gerais. Da mesma forma que quem fala “amapoa” para mulher e “aqué” para dinheiro transmite a informação de que faz parte do grupo social de gays que usam o dialeto Pajubá.

É por isso que a língua exerce um papel de identidade. É por meio da língua, também, que cada um de nós expressamos nossa individualidade, mostramos a que grupos pertencemos. A propósito, você já deve ter notado que integrantes de um grupo acabam agindo de forma semelhante, usando um estilo de roupa, de corte de cabelo... Tudo isso são maneiras de dizer: “Ei, sociedade! Eu pertenço a esse grupo aqui!”


Retomando a reflexão inicial, se você já compreendeu que o sucesso da sua comunicação também depende de facilitar a recepção da mensagem para o seu público-alvo – aquela sala com vários alunos –, então qual estratégia linguística é mais adequada: Usar uma língua compartilhada e dominada por todos os presentes, ou usar um dialeto A ou B compreensível por um ou outro aluno?

Pois é! Devo concordar com você que a primeira estratégia tem muito mais chance de tornar a sua comunicação um verdadeiro sucesso!

“Ah! Mas e se alguém se sentir ofendido por eu não usar o dialeto?” Ok! Eu volto a pergunta para você, pois confio na sua inteligência: Qual dialeto oferece a segurança de que ninguém se sentirá ofendido? Antes dessa dúvida, não seria melhor se perguntar “Estou facilitando a recepção da minha mensagem pelo público-alvo?”

Sem rodeios: para alguém se ofender, primeiro deve ter havido alguém com vontade de ofender. Caso contrário, não houve ofensa alguma, mas sim mero aborrecimento, contra o que ninguém ainda está imune.


Depois de fazer esse caminho lógico-racional, poderíamos aproveitá-lo para examinar os efeitos do “pronome neutro”, que já evoluiu para a “linguagem neutra”.

A primeira questão a ser resolvida é a nomenclatura. Linguagem neutra? A dança, a música, os sinais de trânsito, as roupas, os gestos, as expressões faciais... toda a linguagem deve ser neutra?

É claro que não. Mas e língua neutra? Nem isso. Porque não existe uma estrutura gramatical e sintática adaptada a essa intenção de eliminar o gênero das palavras. “Malemá”, uma ou outra palavra admite a adaptação para atender à expectativa de neutralizar seu gênero. Contudo, se houvesse uma padronização nesse sentido, a comunicação seria tão difícil quanto tentar só mudar o finalzinho dos pronomes.

Eu explico: “Na noite de ontem, meus avós foram encontrados mortos em casa. Eu sou grato a meus avós, que juntos custearam meus estudos.”

Embora trágica, essa sentença é só um exemplo para mostrar a dificuldade de “neutralizar” o gênero. Veja só: “Na noite de ontem, mis (ou minhes) avês foram encontrades mortes em casa. Eu sou grate a mis (ou minhes) avês, que juntes custearam meus estudos.”

Ora! Quem poderia reivindicar sentir-se ofendido ao ouvir meu lamento pela morte de meus avós, só porque eu não neutralizei o gênero?


Assim, o termo que parece ser mais adequado para a “ideia neutra” é dialeto neutro, cujo uso – como todo dialeto – provoca o efeito de afirmar e expressar sua identidade, isto é, quem usa o dialeto neutro demonstra que faz parte de um grupo social específico, dentro do grupo LGBTQIA+. Aliás, dentro da “ideia neutra”, existem diversos dialetos neutros: elu é diferente de el@, que é diferente de elx e por aí vai.

Perceba que toda essa reflexão aqui não pretende diminuir – muito menos retirar – a importância do dialeto neutro, até porque todo ser humano tem direito de se autodeterminar e de expressar sua identidade da forma como achar melhor, de ser livre e ser respeitado com a dignidade humana que lhe é intrínseca.

O propósito dessa reflexão é tão somente de organizar, mesmo que de forma breve, alguns conceitos linguísticos. Em outras palavras: colocar os pingos nos is, arrumar a casa.

Tudo isso a fim de que o dialeto neutro continue sendo usado dentro de seu grupo social, mantendo inalterado o seu efeito linguístico de demonstrar quem são seus integrantes. Ao mesmo tempo, para que o dialeto neutro não seja confundido com uma pretensa boa intenção de acolher os indivíduos que tradicional e infelizmente são vulneráveis a toda sorte de violência.

A intenção de usar o dialeto neutro dentro de uma sala de aula, dentro da comunicação interna de uma empresa ou até na comunicação oficial de algum município até pode ser boa – do ponto de vista inocente –, mas, objetiva e linguisticamente, essa conduta não garante o sucesso da comunicação, inclusive retira a essência do dialeto: expressar uma identidade grupal.

 

* Natanael Zotelli é graduado em Letras e mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS.

 


[1] Dialeto Paulista.

[2] Dialeto Talian, comum na região dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

[3] Dialeto Recifense.

[4] Dialeto Gaúcho.

[5] Dialeto Pajubá, comum entre grupos de gays e travestis.