As muitas vozes verbais

AS MUITAS VOZES VERBAIS

Artigo publicado na revista Língua Portuguesa, nº 112, fevereiro 2015, p.28-31, com o título “É ativo, passivo ou na média?”

Voz é a forma com que o verbo se apresenta para indicar a relação entre ele e o sujeito.

As vozes verbais constituem um assunto difícil que nossas gramáticas nem sempre analisam com a devida profundidade. A rigor, só os verbos transitivos diretos ou os adequadamente chamados bitransitivos (na antiga nomenclatura) podem ter voz ativa, passiva ou reflexiva, pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB). Em frases como José saiu, Antônio foi ao Rio ou Preciso de dinheiro e quejandas, os verbos estariam no que se deveria chamar de voz medial, de que também é exemplo a voz reflexiva, mas seria uma solução conveniente para a análise de frases como José morreu, em que o sujeito, na verdade, é paciente, e seria, como é, disparate falar em voz ativa. Falar em “passividade” em casos como Carlos levou um tiro para justificar que se trata de voz ativa e não de outro tipo de voz, como veremos oportunamente, é escamotear o problema, e não resolvê-lo. Vale dizer: Pela NGB em vigor, uma frase como Ele caiu não estaria em voz nenhuma.

As gramáticas que estudam a diátese (voz verbal) levam em conta apenas as vozes ativa, passiva e reflexiva. Mas há, ainda, a voz medial (de que a reflexiva pode ser um exemplo, embora não único) e uma quinta espécie de voz, que os estudiosos de latim conhecem bem, posto que nem sempre com essa classificação de voz: a depoente. Um verbo latino se chama depoente quando tem forma passiva e significado ativo, como sequor, sequeris, secutus sum, sequi (“seguir”). São semidepoentes os verbos que têm forma ativa no sistema do infectum (conjunto dos tempos de ação incompleta, como os presentes e imperfeitos) e forma passiva no sistema do perfectum (conjunto dos tempos de ação completa, como os perfeitos e mais-que-perfeitos), como fido, es, fisus sum, fidere (“fiar-se”).

Em português, a voz depoente tem o verbo passivo com significado ativo, como em “Ele é um homem lido” ( isto é, que lê) ou como em “Ele cresce a olhos vistos” ( isto é, a olhos que veem). Um tipo diferente de voz depoente é a voz semidepoente, que, ao contrário daquela, tem forma ativa e significado passivo. Trata-se de verbos transitivos diretos com objeto direto, mas com sujeito paciente, como em José levou um tiro, Carlos ganhou um tapa, Jorge pegou sarampo, Antônio recebeu um soco, etc. Embora teoricamente se possa transformar na voz passiva os verbos que tenham objeto direto, o significado passivo das frases acima impede esse tipo de transformação. Falar em “passividade” não resolve casos em que, embora o sujeito seja agente, a ação verbal recai sobre ele, como se a voz fosse reflexiva (mas é voz medial) sem o pronome adequado tornando impossível a transformação passiva, como em: “José pesa apenas trinta quilos.” “Carlos perdeu o ônibus.” “Maria pula corda.”

A gramática gerativa, na teoria padrão, considerava a voz passiva uma simples transformação facultativa da voz ativa. Ora, a diátese é uma categoria gramatical, realizada no verbo, que indica se o sujeito é ou não exterior ao processo ou à ação verbal. Historicamente, a voz passiva se origina não da voz ativa, mas da voz dita medial, que se realiza ora com verbo transitivo que coocorra com um pronome reflexivo (Ele se feriu) ou com objeto duplo em que o sujeito (agente) exerce a ação sobre um objeto distinto, mas em seu benefício (Ele se deu esse luxo), ora com verbo intransitivo cujo sujeito não é necessariamente o agente da ação ou do processo (A montanha tremeu).

A ideia da voz semidepoente parece-me solução adequada para explicar, graças às suas características de uma voz diferente, a impossibilidade de transformação passiva de frases como Antônio levou um soco, em que o verbo parece estar na voz ativa, com objeto direto, mas o sujeito é paciente. No inglês clássico, é possível voz passiva com objeto direto: I was stolen a pencil by him (literalmente: “Eu fui roubado um lápis por ele”). Em redações escolares, é possível encontrar voz passiva construída equivocadamente com objeto direto, como no exemplo seguinte: “O professor foi indagado pelos alunos se podia liberar a turma mais cedo.”

É interessante lembrar ou relembrar que a voz passiva não é necessariamente sinônima da voz ativa correspondente. Há casos em que a voz passiva é semanticamente distinta da voz ativa, contrariando a ideia de que aquela é apenas uma transformação desta. Uma frase como “A cidade viu Tancredo doente” tem sentido diferente do da sua correspondente passiva: “Tancredo foi visto doente pela cidade”, em que o sujeito metonímico da ativa se confunde com um adjunto adverbial de lugar, na passiva. A frase “Eu tirei esta foto” pode ser interpretada assim: “Posei para esta fotografia” ou “Eu fui o fotógrafo responsável por esta fotografia”. Mas a voz passiva correspondente – Esta foto foi tirada por mim – só tem uma interpretação possível: a de que eu fui o responsável pela foto, isto é, a de que fui o fotógrafo. A frase “Um só aluno não fez o dever” não diz o mesmo que “O dever não foi feito por um só aluno”.

Só existem dois tipos de voz passiva: a analítica, construída com o verbo ser auxiliar, como em “A rosa foi vista por José”, e a sintética, construída com o pronome apassivador, como em “Viu-se a rosa”. Alguns gramáticos, confundindo análise semântica com análise sintática, apresentam, equivocadamente, um terceiro tipo de voz passiva: a de infinitivo, como na frase “osso duro de roer”, pretensamente passiva, porque pode ser parafraseada em “osso duro de ser roído”. Ora, nos predicados adjetivais desse tipo (difícil de fazer, duro de roer, fácil de ler, ruim de dizer, etc.), a voz é ativa; pressupõe a existência de um sujeito ativo: osso duro de alguém roer, livro fácil de alguém ler, trabalho difícil de alguém fazer, etc. Por isso é possível dizer: coisas difíceis de fazer (voz ativa), coisas difíceis de se fazerem (voz passiva sintética) e coisas difíceis de serem feitas (voz passiva analítica).

Em frases como “dar a mão a beijar”, a ideia é ainda de voz ativa: dar a mão para alguém beijar, dar a mão a alguém que a beije. Raciocinar com comutações sintáticas é deixar-se enganar pela semântica. A comutação, isto é, a troca de um elemento por outro para verificar se o sentido permanece ou não o mesmo, funciona adequadamente na fonologia, mas fracassa na sintaxe. Por exemplo: pode-se dizer “de tarde”, “de noite”, “de manhã”. Mas, se se pode dizer “à tarde” e “à noite”, não se pode dizer *”à manhã”. A comutação não funciona.

Como a voz ativa e a voz passiva são quase sempre sinônimas, é fácil tomar uma pela outra às vezes, como faz o usuário da língua, ao dizer *Afina-se pianos (por “Afinam-se pianos”) ou *É fácil fazer a lição quando se a sabe (por “quando se sabe ela”). Uma regra de concordância frequentemente ignorada estipula que, sempre que numa oração existir o pronome se, seu sujeito será normalmente o primeiro substantivo ou pronome que aparecer sem preposição. Por isso, é impossível a ocorrência do pronome se com os pronomes pessoais o ou a. É inadmissível dizer O dinheiro é bom quando se o tem: o pronome sem preposição, de acordo com a regra acima, que aparece na oração com o se é o, que não pode ser o sujeito, porque é pronome pessoal típico de objeto direto. Corrija-se : O dinheiro é bom quando se tem (ele). Em Alugam-se pianos, o substantivo não preposicionado – pianos – é o sujeito. Por isso o verbo vai para o plural. Em Precisa-se de empregados, o substantivo está preposicionado, por isso o verbo fica no singular: o sujeito é indeterminado. Diz-se que o sujeito é indeterminado quando não tem núcleo, isto é, quando não existe pronome nem substantivo que exerça essa função explicitamente na oração.

Não precisamos recorrer aos clássicos para provar que não é por falsa concordância que o verbo concorda com o seu sujeito passivo nas construções com o se apassivador, mas pelo fato de o se indeterminador e o se apassivador serem duas realidades diferentes.

Recorramos à intuição, à moda dos gerativistas, e examinemos as frases seguintes:

l. Quanto ao gênero e ao sexo, trata-se de coisas diferentes 2. Desfolhou-se a árvore pela ação do vento.

Nenhum falante substituiria o se por a gente ou por alguém, no exemplo 1, embora seja patente a indeterminação do sujeito; e ninguém tampouco acharia que, no exemplo 2, a árvore se teria desfolhado, mas que ela foi desfolhada pela ação do vento. No exemplo 2, a significação passiva é óbvia demais.

Parece-me que a falta de concordância que se observa em frases como Alugam-se casas, na fala popular (*Aluga-se casas), se deve à inversão da ordem. Em frases como O chá e o café se derramaram sobre a mesa, o significado passivo é mais bem aceito pela intuição ou pela psicologia do falante do que em frases em que o sujeito aparece depois do verbo. Ninguém deixaria de reconhecer o sentido passivo em frases como: 3. Tu te operaste de um tumor no cérebro. 4. Nós nos batizamos quando tínhamos dois meses de vida. 5. Vós vos chamais Pedro.

Todos os estudos por mim examinados que confrontam o indeterminador e o apassivante em português ou não levam em conta o agente da passiva expresso, ou só levam em conta a 3ª pessoa se (à exceção do livro de Cláudio Brandão, Sintaxe clássica portuguesa, Belo Horizonte: Imprensa da Universidade de Minas Gerais,1963). Na verdade, as outras pessoas também têm o seu pronome apassivador respectivo, como demonstram os exemplos 3, 4 e 5, acima transcritos. Pela própria definição de indeterminação do sujeito, o pronome indeterminador só pode ser da 3ª pessoa.

José Augusto Carvalho
Enviado por José Augusto Carvalho em 28/08/2022
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