ENSINO DE VARIANTES LINGUÍSTICAS E A IDENTIDADE DO SUJEITO: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA TEORIA DOS ESTABELECIDOS E OUTSIDERS
ENSINO DE VARIANTES LINGUÍSTICAS E A IDENTIDADE DO SUJEITO: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA TEORIA DOS ESTABELECIDOS E OUTSIDERS
TEACHING LINGUISTIC VARIANTS AND THE SUBJECTIVE IDENTITY: A PERSPECTIVE FROM THE THEORY OF THE ESTABLISHED AND THE OUTSIDERS
IVY GOBETI
PROF. DR. ROGÉRIO DO AMARAL
Presidente Prudente-SP
2017
RESUMO
ENSINO DE VARIANTES LINGUÍSTICAS E A IDENTIDADE DO SUJEITO: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA TEORIA DOS ESTABELECIDOS E OUTSIDERS
Discussões acerca do ensino das variantes linguísticas da língua portuguesa têm se provado um tópico constante entre docentes que buscam formação continuada e abordagens contemplando um ensino mais integrado à noção de aluno como centro do processo de ensino-aprendizagem. O objetivo deste estudo foi o de contribuir com uma perspectiva mais moderna sobre a identidade do aluno de língua portuguesa inserido na educação básica brasileira, especialmente no que diz respeito à rede pública de ensino, buscando uma conjunção das ideias do sociólogo alemão Norbert Elias com o cenário atual de constante luta para adequar currículos contemporâneos a tradições persistentes advindas de um sistema educacional ainda carregando marcas elitistas e ditatoriais. A pesquisa de metodologia qualitativa constou de investigação e associação de passagens da obra do supracitado autor intitulada “Os Estabelecidos e os Outsiders” com a problemática da construção da identidade do sujeito, aluno de língua portuguesa, em relação à própria língua materna de acordo com as abordagens ainda insistente e amplamente empregadas em sala de aula. As associações se mostraram promissoras em relação à condução de futuros estudos que possam se aprofundar nas questões propostas a fim de que a construção da identidade do aluno brasileiro sobre sua própria forma de comunicação seja explorada a partir de noções mais contemporâneas, com contribuições de enfoque mais social. Concluímos que a obra do sociólogo Norbert Elias tem muito a acrescentar de forma teórica para a construção de práticas escolares que levem em consideração a identidade cultural dos alunos na escolha do currículo e das abordagens em sala de aula.
Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa, Variantes linguísticas, Norbert Elias, Os Estabelecidos e os Outsiders, Identidade do sujeito.
ABSTRACT
TEACHING LINGUISTIC VARIANTS AND THE SUBJECTIVE IDENTITY: A PERSPECTIVE FROM THE THEORY OF THE ESTABLISHED AND THE OUTSIDERS
Discussions on teaching linguistic variants in the Portuguese language have proven a constant topic among teachers who seek continuous training and approaches encompassing an education more consolidated with the notion of the student as the center of the teaching-learning process. The objective of this study was to contribute to a more modern perspective on the identity of the Portuguese language student inserted in the Brazilian basic education, especially concerning the public system, seeking to link the ideas of the German sociolist Norbert Elias to the current scenario of constant struggle to adequate contemporary curricula to persistent traditions derived from an educational system still carrying elitist, dictatorial signs. With a qualitative methodology, the research was constituted of an investigation and association of excerpts from a piece by the abovementioned author entitled “Established and Outsiders” with the issue of building a subjective identity of the Portuguese language student regarding their own mother tongue according to the still insistent and widely employed approaches in the classroom. The associations proved promising regarding the development of further studies to deepen in the questions proposed for the process of building the Brazilian students’ identity concerning their own communication to be explored from more contemporary notions, with contributions of more social focus. We conclude that the piece by sociologist Norbert Elias has plenty to add on theoretically to the elaboration of educational practices considering the students’ cultural identity when choosing both curricula and approaches for the classroom.
Keywords: Portuguese Language Education, Linguistic Variants, Norbert Elias, Established and Outsiders, Subjective identity.
Introdução
Com o avanço da discussão acerca de novas abordagens e alternativas para a construção de currículos que contemplem propostas mais contemporâneas e mais integradas com as dramáticas mudanças ocorridas no ambiente escolar, renovadas teorias e investigações originais têm apresentado uma participação crescente nas pesquisas voltadas ao ensino, especialmente no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem.
No âmbito da linguagem, mais especificamente da Língua Portuguesa, as mais recentes contribuições do campo da linguística foram pouco a pouco ganhando terreno e se solidificando nas propostas de formação de professores, desde a graduação até a educação continuada de docentes. Por mais resistentes que sejam ainda determinados profissionais que trabalham com a língua em relação a essas novas perspectivas e olhares sobre nosso idioma, é fato que atualmente não é estranho a nenhum professor que se discuta o ensino de variantes, que se tenham de adaptar currículos e conteúdos programáticos a novos cenários escolares envolvendo toda essa diversidade linguística antes meramente ignorada.
Nesse mesmo contexto, a pesquisa científica na área das humanidades também vem sofrendo consideráveis mudanças, que para uns são avanços, mas para outros são formas inadequadas de lidar com conteúdos da área. Enquanto em outros países a pesquisa inseria nos campos de conhecimento que tratam das humanidades já têm incorporado a pesquisa de campo há anos, ou até mesmo décadas, o correspondente escopo brasileiro parece ainda apresentar resistência a esse tipo de abordagem. Ainda é comum que em programas de pós-graduação de universidades brasileiras, entenda-se que pesquisadores trabalhando em campo são aqueles que conduzem algum tipo de coleta cujo material é palpável e concreto.
Contudo, quando tratamos de linguagem, não tratamos única e isoladamente de um campo de conhecimento autossuficientemente dotado de todos os aspectos passíveis de investigação para um entendimento amplo e eficiente de sua essência, especialmente em uma era baseada na informação, movimentação e interação de diversos setores da sociedade. Estudos interdisciplinares, voltados a campos do conhecimento tais como a sociologia, por exemplo, são uma fonte de potenciais para que a pesquisa científica caminhe em direção a essa expansão do conhecimento dos mecanismos não apenas de funcionamento e desenvolvimento da linguagem, mas de como estes agem concretamente no ambiente escolar, na formação do indivíduo brasileiro, que reconhece (ou não) na língua materna a expressão de sua cultura e nesse contexto se vê valorizado ou desvalorizado, ou perpetuando um ciclo de autorrejeição ou transformando com o auxílio de seus professores um cenário em benefício de futuras gerações que terão a oportunidade de se autenticar dentro de sua própria cultura, marcadamente pela forma como se expressam linguisticamente.
Dessa forma, o objetivo deste estudo foi o de contribuir com reflexões acerca de uma metodologia de pesquisa, envolvendo inclusive o trabalho em campo, capaz de aliar macros aspectos sociológicos e uma investigação mais interdisciplinar dos contextos dentro dos quais se inserem os alunos do sistema brasileiro de educação básica em situações regionais mais amplas, ou mesmo em âmbitos concretamente muito menores, como uma específica instituição de ensino. O objetivo é demonstrar como a obra do sociólogo alemão, Norbert Elias, Os Estabelecidos e os Outsiders, abordando detalhadamente um estudo sociológico acerca da divisão entre bairros de uma cidade industrial da Inglaterra (Winston Parva) no que diz respeito à forma, como seus habitantes se enxergavam e enxergavam ao outro.
Acreditamos que essa abordagem pode beneficiar o esclarecimento acerca de questões intrínsecas na forma com a qual encaramos, tanto como professores como quanto alunos, a exigência e o ensino da norma culta, ou norma padrão da língua portuguesa, bem como a resistência que recai sobre o ensino das variantes da língua portuguesa. A partir de um tratamento que investiga, analisa e questiona as origens e comportamentos de dois grupos – um que seria o estabelecido, portanto se encontra em posição confortável e aparentemente superior, e um que se seria o outsider, ou seja, aquele que está à margem, não se encaixa e é visto com inferioridade pelo primeiro agrupamento de pessoas.
A proposta é demonstrar a partir de algumas das reflexões do sociólogo alemão como poderíamos compreender melhor algumas comunidades escolares e até ditos preconceitos regionais, envolvendo um culto da língua padrão como a essência mais elevada da língua e desvalorizando os falantes das mais diversas variantes desde muito cedo, formando alunos e indivíduos em sua maioria sem apreço pela língua materna e sem hábitos de leitura suficientes para tirá-los dessa condição marginalizada.
Metodologia
Esta pesquisa de caráter qualitativo revisa a obra do sociólogo alemão Norbert Elias ressaltando trechos que consideramos se encaixarem no que poderia se desenvolver como uma pesquisa de cunho sociológico para o tratamento de como a língua portuguesa é ensinada em um formato fragmentado, que alimenta negativamente diferenças em lugar de exaltá-las como benéficas e divide tanto alunos quanto professores em posições de insegurança, rivalidade, perseguição, satirização, superioridade e descrédito.
Os trechos analisados dizem respeito às interpretações oriundas da análise de uma pesquisa sociológica conduzida em uma pequena comunidade industrial da Inglaterra, na qual os moradores das diferentes zonas do local estabeleciam entre si relações de marcadas diferenças de tratamento, especialmente devido ao fator tempo, ou seja, o período dentro do qual as famílias de cada zona já se encontravam no local e haviam construído suas tradições e modos de vida que consideravam aceitáveis.
Os trechos selecionados foram associados aos cenários que atualmente configuram a realidade multifacetária do sistema de ensino básico brasileiro e pretendem estabelecer uma relação com situações específicas enfrentadas por professores e alunos na prática de sala de aula no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa e suas implicações na formação do indivíduo perante sua língua materna.
Resultados
[…] como que em miniatura, um tema humano universal. Vez por outra, podemos observar que os membros dos grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmos (se auto-representam) como humanamente superiores (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 13).
Não é nada raro nos depararmos, enquanto estudantes do ofício de ensinar, com a noção de que uma escola é um pequeno universo, é um simulacro, ainda que bastante real, de tudo o que acontece lá fora, na sociedade como um todo, não sendo à toa que é exatamente ali, no ambiente escolar, que a criança e o adolescente se deparam pela primeira vez com situações que o acompanharão ao longo de toda a sua jornada social. Assim como a análise de uma pequena comunidade industrial, Winston Parva, na Inglaterra, parece simular o que ocorre como um todo em toda e qualquer sociedade, em diferentes escalas, níveis e dimensões, a análise de uma comunidade escolar, seja esta referente a uma instituição em si ou a um grupo destas representando um caráter regional, também pode revelar formações culturais profundas e comportamentos arraigados que indicam relações de superioridade e inferioridade, alimentadas tanto por quem inferioriza quanto por quem é inferiorizado. O grupo que se enxerga como o estabelecido parece sempre vir dotado de uma imagem de si mesmo como creditada ao verdadeiro valor sobre algo, no nosso caso de análise, do uso da língua portuguesa. Fato este que se inicia exatamente ali, com o próprio docente, que muito frequentemente vai abordar a língua culta como o ideal a se alcançar e o único digno de valor.
[…] vêem-se como pessoas “melhores”, dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros. Mais ainda, em todos esses casos, os indivíduos “superiores” podem fazer com que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se humanamente inferiores (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 13).
Quase todo professor enche o peito de orgulho e elogia exaltadamente aquele aluno que escreveu uma redação ou realizou um discurso de “português impecável” e postura linguística eloquente. Dependendo da forma como isso é conduzido, é a partir daí que o docente passa a se colocar junto ao grupo dos estabelecidos e gerar vínculo apenas com os que com esse cenário se familiarizam. É nesse momento de nossa discussão que vale ressaltar que atualmente nossas salas de aula são mescladas com alunos de todo tipo de origem social e econômica, gerando universos diferenciados dentro de um mesmo microuniverso.
Salvo casos de realidades mais extremas, como escolas situadas em regiões extremamente carentes ou instituições de ensino bastante restritas a um público de alta renda, o que mais facilmente observamos na conjuntura educacional brasileira é uma mistura de perfis. Alunos oriundos de famílias de renda média para baixa, mas que conseguem bolsas de estudos para colégios que normalmente não poderiam frequentar, alunos do sistema público que tiveram de mudar de uma escola particular devido à queda no rendimento financeiro da família, apenas para citar duas de tantas possibilidades que fazem das salas de aula brasileiras, no geral, um verdadeiro mosaico de alunos e suas histórias.
Para um indivíduo em formação, que passa a maior parte de seu tempo inserido no ambiente escolar e neste experimentando as primeiras e principais situações sociais de sua história, ver um professor tão espontaneamente se colocar preferencialmente partidário de um grupo que se distingue intimamente da forma como ele é colocado em sociedade e como consequência acaba por se ver, pode ser determinante para a formação de um indivíduo que, além de inseguro, não desenvolverá uma relação positiva com a língua materna, o que é passível de levar a mais graves desenrolares nos âmbitos da leitura e comunicação.
[…] é frequente poder-se descobrir que, também nesses outros casos, tal como em Winston Parva, um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros de outros grupos – o que constitui, essencialmente, o que se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidos-outsiders (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 15).
Outro aspecto interessante de se analisar nessas figurações estabelecidos-outsiders, como propomos para os grupos detentores do acesso e desenvolvimento da norma culta da língua portuguesa e os demais grupos que não possuem essa mesma oportunidade ou história, é o grau de coesão que o grupo dito superior conserva em relação ao grupo que marginaliza. Por exemplo, dentro de um ambiente escolar, não é difícil nos depararmos, desde escalas menores até maiores – em uma única sala de aula, ou uma série inteira – as chamadas “panelinhas”, ou seja, pequenos grupinhos formados por alguns alunos que se identificam como detentores de características em comum que julgam importantes para sua união, geralmente para passarem uma determinada imagem que desejam ao restante da comunidade de alunos.
É comum que as “panelinhas” sejam formadas justamente por esses indivíduos que se julgam superiores; normalmente eles possuem várias regras, que ficam implícitas ao restante dos alunos: são as meninas mais bonitas e/ou populares, os meninos e as meninas considerados (frequentemente declaradamente pelos próprios professores) os mais inteligentes, ou com as melhores notas. Para quem não é visto pelos demais como titular de algumas dessas características, a exclusão visual, silenciosa e amedrontadora é a mais eficiente expressão de rejeição.
Nos mais diversos cenários escolares brasileiros que já citamos, esses grupinhos são geralmente formados por sujeitos de origens menos humildes, que se enxergam como membros mais valiosos na sociedade, ainda que, dependendo da idade, sem uma consciência mais esclarecida sobre o que sentem. Mesmo em ambientes escolares inseridos em comunidades mais pobres e marginalizadas, não é raro que esses grupos sejam formados por crianças e adolescentes já com certos comportamentos violentos e ameaçadores e se unam nessa intenção, sempre colocando para baixo a partir do medo e da insegurança aqueles alunos que mostram um interesse maior pela aprendizagem e desejam desenvolver mais suas competências linguísticas, como, por exemplo, é comum encontrarmos em comunidades mais desfavorecidas crianças apaixonadas pela leitura, que sofrem para ter acesso, tempo e sossego para se envolverem no mundo dos livros.
Um modo conhecido de conceituar esse tipo de observação é classificá-la como preconceito. Entretanto, isso equivale a discernir apenas no plano individual algo que não pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do grupo. Na atualidade, é comum não se distinguir a estigmatização grupal e o preconceito individual e não relacioná-los entre si (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 16).
A palavra que mais comumente se emprega em todo tipo de contexto social é “preconceito”. Ela traz em si uma simplificação, uma potente diminuição do caráter verdadeiro dessas relações de exclusão. Os indivíduos aceitam que simplesmente são vítimas de preconceito, ou que a sociedade é mesmo preconceituosa, como se a natureza da palavra dissesse respeito a alguma entidade autônoma, que nasce e cresce por si só. As coisas são assim e sempre foram, as pessoas são preconceituosas. Ora, o que é ter um preconceito?
É estabelecer um conceito sobre algo ou alguém de forma prévia, ou seja, sem ter tido o devido contato com aquilo que se analisa ou critica, dessa forma, constitui-se um pré-conceito. Essa é uma via de mão dupla no contexto brasileiro, que vez usa o advento do preconceito como explicação única e simplória para toda e qualquer situação de marginalização, e vez alega que o preconceito no Brasil simplesmente não existe, geralmente se referindo a questões raciais, como se estas fossem de fato isoladas de todas as outras manifestações de segregação envolvidas em nossa cultura.
A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe são inerentes. Essa é também a precondição decisiva de qualquer estigmatização eficaz de um grupo outsider por um grupo estabelecido. Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 16).
No que diz respeito ao uso da norma padrão da língua portuguesa, os elogios exaltados voltados aos alunos, desde cedo, que a empregam de forma eloquente e clara, se perpetuam pela vida adulta destes, dotando uns de maior segurança e outros de intrínseca insegurança, o que, não raramente, se reflete inclusive na realidade que estes enfrentarão no mercado de trabalho. Acontece que essa força profunda de segregação, humilhação, brincadeiras de mau gosto, hoje tão costumeiramente tratadas como o problema do bullying, não se exercem de forma tão eficaz apenas porque aqueles pequenos grupos, de pequenas comunidades escolares ou determinadas regiões do país pensam e agem dessa forma. O fenômeno tem a força que tem porque existe uma validação altamente declarada pela sociedade em várias instâncias, inclusive, e muitas vezes principalmente, advinda do seio das famílias dos próprios outsiders, nas quais os filhos constantemente ouvem que devem “aprender a falar direito” para conseguirem mais que os pais tiveram, ou ao assistirem a programas televisivos, elogiarem com peito pleno de admiração e afirmarem algo como “olha só, é assim que se fala, isso é jeito de falar, quem sabe falar é outra coisa”.
A sociedade está constantemente validando o poder e a autoimagem desse grupo de estabelecidos que se julgam detentores do conhecimento e aplicação da forma mais elevada da língua. Geralmente, isso não acontece de forma tácita, como muitas vezes ocorre com as questões raciais, são declaradas de todos os lados. Falas corriqueiras, frequentemente inseridas em contextos de brincadeiras, ou seja, amplamente aceitas como algo inocente e divertido, como, por exemplo, “olha aqui, assassinaram o português”, praticamente nunca consideram quem é o enunciador, de onde ele vem, em que contexto sua linguagem foi empregada daquela forma.
Em várias camadas da sociedade, o tal “assassinato do português” é, muitas vezes, meramente a expressão de uma variante linguística ou reflexo da forma encontrada por uma comunidade de se expressar linguisticamente e se comunicar com os outros âmbitos da sociedade uma vez que não tiveram devido acesso e/ou oportunidade de apropriado desenvolvimento de suas competências acerca da língua portuguesa durante sua educação formal, ou mesmo tiveram completa ausência desta.
É frequente as crenças coletivas serem impermeáveis a qualquer dado que as contradiga ou a argumentos que revelem sua falsidade, pelo simples fato de serem compartilhadas por muitas pessoas com quem se mantém um contato estreito. Seu caráter coletivo faz com que elas se afigurem verdadeiras, particularmente quando se cresceu com elas, desde a primeira infância, num grupo estreitamente unido que as toma por verdades, e mais ainda quando os pais e os avós também foram criados com essas crenças. Nesse caso, o sentimento de que a crença é verdadeira pode tornar-se quase inerradicável e persistir com grande intensidade, mesmo que, num nível mais racional o indivíduo chegue à conclusão de que ela é falsa e venha a rejeitá-la (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 100).
Desde o contexto escolar até a vida adulta, algo que também se aprende a reproduzir nessa dinâmica estabelecidos-outsiders é a falsa convivência, ou seja, alunos das “panelinhas” e alunos marginalizados convivem obrigatoriamente em todas as oportunidades de eventos escolares rotineiros ou não, e raramente declaram uns aos outros a forma com que se sentem em relação à superioridade ou inferioridade envolvidas na forma com que se enxergam e enxergam uns aos outros. Dessa vez, similarmente ao que ocorre com as questões raciais, nas quais as falas depreciativas acontecem após a pessoa depreciada não estar mais presente, no caso da forma com que certos alunos falam e se expressam linguisticamente há também uma satirização elaborada apenas em eventos nos quais os grupos estabelecidos estão em confraternização, mas são tacitamente sentidos pelos outsiders, não raramente acompanhados de risadinhas e apontamento de dedos que podem ser visualizados pelos depreciados.
No âmbito que envolve crianças e adolescentes, essas manifestações se iniciam muito cedo, e quase sempre, nesses casos, o que ocorre é a reprodução de falas de pais e avós, que, por sua vez, reproduzem uma tradição já intrínseca e irrefletida. Essa validação que já vem de casa, ou seja, do ambiente no qual primariamente a criança começa a ter as noções de certo e errado, apropriado e inapropriado, ganha muita força quando transposta para o simulacro da sociedade como um todo que é a escola.
Em relação a essa influência da família, temos dois lados: o lado dos que crescem na cultura dos rejeitados e marginalizados e o lado dos que crescem na cultura dos estabelecidos e validados pela sociedade. Analisemos a partir da citação a seguir o primeiro caso:
Tendo crescido em famílias rejeitadas pelas famílias ordeiras do bairro e excluídas de qualquer relação social mais estreita com elas, esses jovens desenvolviam tendências comportamentais que faziam com que o estigma da rejeição e da exclusão recaísse sobre eles como indivíduos. E, ao serem rejeitados como outsiders de posição inferior, é bem possível que, por sua vez, levassem seus filhos, sob o impacto dos mesmos mecanismos sociais, a enveredar pelo mesmo caminho (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 114, 115).
É comum que o aluno já chegue ao ambiente escolar carregado de uma imagem de si mesmo que mal consegue interpretar, apenas sente haver em si algo de inferior e começa cedo a identificar os traços dessa segregação, mesmo que em um processo interno. Não raramente, aliás, na maioria das situações, esses outsiders, que reproduzirão desde cedo na escola o jeito de falar e se expressar linguisticamente de suas famílias e as variantes da língua portuguesa tão facilmente desprezadas nas escolas, são oriundos de famílias que já receberam esse tipo de tratamento ao longo de suas trajetórias educacionais e profissionais, influenciando, logicamente, em suas vidas pessoais e na imagem que tem de si mesmos.
Dessa forma, é comum que se desenrolem dois comportamentos predominantes: a família pode ter uma postura conformista, submissa, tendo se acomodado na aceitação de que de fato são inferiores e devem ter nos outros grupos (os estabelecidos) a imagem ideal do que na verdade poderiam, deveriam ser, repassando assim para seus filhos tal perpetuação do ciclo de insegurança que os seguirá ao longo de sua experiência escolar e da qual dificilmente se livrarão na vida adulta. Por outro lado, as famílias que cresceram e se multiplicaram como outsiders podem adotar uma postura defensiva e agressiva como mecanismo de autoafirmação, ensinando a seus filhos que a melhor solução para eles foi se isolarem do convívio com os demais (os estabelecidos) e desistirem de provar seu valor e mostrar seu lugar na sociedade.
Nesse contexto, não é raro que os filhos enxerguem nessa postura defensiva não apenas uma necessidade de reproduzi-las, mas também de criarem uma espécie de repulsa por aquilo que o grupo dos estabelecidos é visto como superior, no caso dessa proposta de abordagem linguística, o aprendizado da norma padrão da língua portuguesa e tudo o que advém desta, como o gosto pela leitura e a dedicação a estudos, mais para frente, associados a vestibulares e outras seleções para ingresso em universidades que exijam o domínio das normas da língua materna, perpetuando, dessa forma, a visão de que indivíduos como eles não conseguem chegar a ter uma formação acadêmica.
Já àqueles que crescem no contexto das famílias que se estabeleceram em lugar confortável à visão da sociedade, existe uma distinta dinâmica:
As crianças da “aldeia” ouviam dos pais as repetidas histórias depreciativas sobre o loteamento e, por sua vez, levavam da escola para casa qualquer história sobre crianças da Zona 3 que tendesse a confirmar a crença em sua inferioridade. Assim, numa entrevista com uma família “aldeã”, o tema da educação e sua importância para a geração mais nova foi levantado pelos pais na presença de sua filha de treze anos, que também estava na sala. A mãe disse que algumas pessoas não percebiam os benefícios de uma boa educação e, a título de exemplo, citou “uma mulher do loteamento, na reunião de pais na semana passada. A diretora estava falando de como estava bonito o uniforme escolar e essa mulher se levantou e disse que não pagar por ele, porque seu marido estava na cadeia. ” O pai bufou, num gesto de repulsa, e a filha riu. E a mãe acrescentou que “era gente assim, lá do loteamento, que estragava Winston Parva” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 99, 100).
Nesse contexto, é comum que a fofoca seja um mecanismo central para a reprodução dos comportamentos que depreciam o outro. Os sujeitos dos grupos que se julgam superiores entendem que podem comentar sobre a vida de indivíduos não pertencentes a esse mesmo meio, uma vez que são detentores da forma correta com a qual todo e qualquer indivíduo da sociedade deveria agir. Como é tão comum em diversas capitais e regiões do Brasil, um condomínio de famílias mais abastada pode ser vizinho bastante próximo de casas mais humildes, que na realidade estiveram no bairro há mais tempo.
Nesse âmbito, as crianças poderão entrar em contato, na própria mesa de jantar de suas casas, com comentários genéricos e pejorativos sobre esses indivíduos mais humildes, que, normalmente em suas palavras, “falam cada coisa, de cada jeito”, “gritam uns com os outros para se comunicarem”, “não sabem nem falar direito e ainda querem trabalhar” etc. A não ser que a criança que cresça ouvindo esse tipo de comentário seja, ou venha a ser, dotada de uma consciência social mais ampla por si só ou por ter entrado em contato com outras visões de questões como essa, o padrão é que ela reproduzirá isso no ambiente escolar ao identificar que há uma associação na forma como seus coleguinhas se expressam e a forma como seus vizinhos se comunicam.
A fim de finalizarmos esta etapa de nossa exposição, analisemos um pouco do que se trata esse processo com caráter de perpetuação dessa relação distorcida, que no âmbito escolar divide e confunde professores e alunos, coloca-se como uma barreira de força indecifrável para muitos nela envolvida e cinge o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa de forma a criar uma rede segregações e aflições que precisam urgentemente encontrar caminhos para se desfazerem a fim de abrir as portas para um ensino no qual todos possam se identificar na expressão de sua língua materna.
A complementariedade entre o carisma grupal (do próprio grupo) e a desonra grupal (dos outros) é um dos aspectos mais significativos do tipo de relação estabelicidos-outsiders encontrada aqui. Ela merece um momento de consideração, pois fornece um indício da barreira emocional erguida nesse tipo de figuração pelos estabelecidos contra os outsiders. Mais do que qualquer outra coisa, talvez, essa barreira afetiva responde pela rigidez, amiúde extrema, da atitude dos grupos estabelecidos para com os grupos outsiders – pela perpetuação do tabu contra o contato mais estreito com os outsiders, geração após geração, mesmo que diminua sua superioridade social ou, em outras palavras, seu excedente de poder (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 18).
Essa raiz emocional, afetiva, que circunda nossas relações sociais e a forma como enxergamos o outro, em um nível muito mais intenso que possamos dimensionar, pode ser uma das respostas para beneficiar o desenlace dessa relação de superioridade e inferioridade, ao menos no ambiente escolar, ao menos nas oportunidades e eventos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa, a fim de promover um contato e uma abordagem das variantes linguísticas com as quais todos temos contato diariamente em contextos urbanos, especialmente, não importando nossas origens ou os espaços mais comumente por nós frequentados.
É essencial enfatizar que esse é um movimento que deve partir do professor e da unidade da instituição educacional como um todo, em caráter interdisciplinar, uma vez que a comunicação e a língua permeiam a essencialidade de todas as disciplinas, portanto, é em primeira instância o professor que deve buscar por uma formação mais esclarecedora e que contemple mais aspectos sociais envolvidos em sua prática docente, que podem não haverem sido abordados eficientemente em uma graduação, por exemplo.
Considerações finais
É necessário que ressaltemos que a proposta de uma investigação acerca da abordagem de ensino e da dinâmica que se apresenta nas escolas em relação à gramática normativa e às variantes da língua portuguesa não têm a pretensão de apontar culpados ou vítimas, aqueles que agem de forma correta ou aqueles que têm uma postura errônea. Não se trata de revelar o preto no branco, meros lados de moedas, muito pelo contrário, trata-se de ir a fundo para conhecer, determinar, qualificar e explorar os aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos que fazem uma comunidade escolar agir como o faz, uns em relação aos outros, e dessa forma, no cerne da problemática, ir encontrando soluções que possam se inserir naturalmente no desenvolvimento das atividades escolares a fim de amenizar, ou quem sabe em longo prazo, em certas comunidades, erradicar essa segregação que tanto compromete o desenvolvimento linguístico de alunos brasileiros.
O problema a ser explorado não consistia em saber qual dos lados estava errado e qual tinha razão, mas em saber que características estruturais da comunidade em desenvolvimento de Winston Parva ligavam dois grupos de tal maneira que os membros de um deles sentiam-se impelidos – e tinham para isso recursos de poder suficientes – a tratar os de outro, coletivamente, com certo desprezo, como pessoas menos educadas e, portanto, de valor humano inferior, se comparadas com eles (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 14).
O grande perigo que aqui se esconde é que esses recursos de poder são frequentemente providos e sustentados pelos próprios professores. São comportamentos muitas vezes quase que automáticos, o elogio ao aluno que emprega a norma culta da língua portuguesa raramente é seguido de algum incentivo para que os demais possam também atingir esse grau de domínio linguístico. Muitos livros didáticos vêm trazendo propostas renovadas, inspiradas nas recentes contribuições de variados campos da linguística, contudo, ainda são poucos os docentes que levam tais abordagens a sério ao ponto de desenvolverem atividades que gerem significado e identificação em sala de aula.
A escola pode ser o ambiente em que a criança e o adolescente advindos de famílias de indivíduos que se encontram na configuração de estabelecidos tenham a oportunidade de entrar em contato com uma imagem diferenciada sobre os falantes das variantes linguísticas da nossa língua, passando a enxergá-los com a validade que nossa cultura os oferece. Da mesma forma, os sujeitos oriundos de famílias que se encontram na posição de outsiders podem ter na escola a chance de serem tratados com reconhecimento de acordo com a forma com que se expressam e se sentirem mais integrados à comunidade escolar como um todo, e consequentemente com a sociedade.
Entretanto, uma vez evidenciado o problema da distribuição das chances de poder que está no cerne das tensões e conflitos entre estabelecidos e outsiders, torna-se mais fácil descobrir um problema subjacente, que costuma passar despercebido. Os grupos ligados entre si sob a forma de uma configuração de estabelecidos-outsiders são compostos de seres humanos individuais. O problema é saber como e por que os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao dizer “nós”, enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros seres humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como “eles” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 27).
As investigações sobre a dinâmica no processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa no ambiente escolar contando com a perspectiva das relações de configuração estabelecidos e outsiders tem potencial para analisar o que subjaz nesse cenário. Uma pesquisa de campo, com questionários e dados estruturados, pode contribuir para o entendimento do que pensam e como agem os professores acerca da questão, qual seria seu grau de conscientização sobre o efeito que suas atitudes têm sobre a formação do sujeito aluno da língua materna, se buscam formação continuada para se adaptarem às novas realidades de indivíduos mesclados em únicas salas e materiais didáticos com propostas inovadoras. Por outro lado, pode-se também investigar os grupos de alunos e quais as regras que usam para se inserirem em cada um, bem como as regras aplicadas para não aceitarem determinado sujeito no contexto partilhado.
Esse tipo de exame pode colaborar com a ação dos professores a fim de fazer com que passem por uma transformação profunda e elaborem propostas de aula que enfatizem a exaltação de todas as formas da nossa língua e mostrem a função e o lugar de cada uma, validando o espaço de cada uma delas em nossa cultura, permitindo que se estabeleçam identificações individuais e reconhecimentos em grupo. Tudo isso pode não apenas sanar conflitos regionais, como, por exemplo, no caso da região metropolitana de São Paulo, onde o preconceito contra indivíduos originários do norte e do nordeste do país alimenta depreciações há décadas e subestima a expressão linguística desses sujeitos, como também gerar soluções empolgantes e desafiadoras, tanto para os professores quanto para os alunos, fazendo com que as naturezas dinâmica, social, cultural e viva da língua se sobressaiam e formem alunos linguisticamente conscientes de seu lugar na sociedade, bem como do lugar do outro.
Finalizamos nossa discussão com um último trecho que deixa claro esse caráter de autonomia, de vida própria, de algo fora do nosso poder de observação e controle, que esse tipo de relação proporciona, tanto em pequenas como em grandes comunidades, tanto em estreita quanto em larga escala, seja concernente a qual for o aspecto focal da investigação:
No momento, as fantasias grupais continuam a escapar pelas malhas de nossa rede conceitual. Surgem como fantasmas proto-históricos que parecem ir e vir arbitrariamente. No estágio atual do conhecimento, chegamos ao ponto de reconhecer que as experiências afetivas e as fantasias dos indivíduos não são arbitrárias – que têm uma estrutura e dinâmica próprias. Aprendemos a perceber que essas experiências e fantasias individuais, num estágio primitivo da vida, podem influenciar profundamente a moldagem dos afetos e a conduta em etapas posteriores. Mas ainda estamos por elaborar um arcabouço teórico passível de verificação para ordenar as observações sobre as fantasias coletivas relacionadas com o desenvolvimento dos grupos (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 27).
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. 15 ed. Loyola: São Paulo, 2002
ELIAS, Norbert;SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
FREIRE, P. PAPERT, S. O futuro da escola. São Paulo: TV PUC, 1996.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCN). Língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1997. v. 2.
SANTOS, Veraluce Lima dos. Ensino de Língua Portuguesa. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009