Sobre a conceituação de verbo

No âmbito dos estudos morfológicos, um dos grandes problemas levantados pelos linguistas é seguramente a imprecisão dos conceitos utilizados para a identificação das classes de palavras.

A tradição gramatical tem privilegiado interpretações de fundo semântico. O entendimento de que o substantivo nomeia, o adjetivo qualifica e o verbo traduz ação, por exemplo, tem sido comum na abordagem gramatical.

Os linguistas têm procurado exaustivamente demonstrar a precariedade de definições calcadas nas características semânticas da classe sob análise. E isso se deve ao fato de que, estabelecida a caracterização semântica, essa não é suficiente para isolar a classe analisada, distinguindo-a de todas as demais.

Assim, por exemplo, há substantivos que indicam ações (o trabalho, a venda, a luta etc.), fenômenos (chuva, relâmpago etc. ), estado (doença, saúde, tristeza etc. ), e, como se sabe, costuma-se associar a ideia de ação, estado ou fenômeno a verbos, reproduzindo-se um saber longamente divulgado pela tradição gramatical

Na verdade, quando o estudante distingue de forma eficaz as classes de palavras – apesar das ferramentas que lhe são apresentadas –, pode-se imaginar que o faça em razão de uma teoria implícita, que independe de conceituações apreendidas.

Na situação anterior, a eficácia na identificação de um verbo, por exemplo, pode ser creditada à opulência formal dessa classe de palavra. Sob esse aspecto, dentre as classes, a mais simples de ser distinguida é exatamente o verbo, visto que apresenta morfemas gramaticais aptos a traduzir noções modo-temporais e número-pessoais.

Os linguistas têm feito esforços no sentido de fornecer critérios mais precisos e seguros para a identificação das classes de palavras em português. Macambira (1982) faz um estudo de classes gramaticais que procura focar a natureza semântica, mórfica e sintática de cada uma delas, o que tem inspirado, inclusive, ainda que muito parcialmente, alguns autores de gramáticas escolares.

Inspirados nesse autor, registraríamos a seguinte conceituação de verbo:

Quanto ao aspecto semântico, verbo é a palavra que indica ação (entregar, trabalhar etc.) , estado (estar, ficar etc. ) ou fenômeno (chover, nevar), situados no tempo. Quanto ao aspecto mórfico, verbo é a palavra que recebe flexões modo-temporais (-ra, -ria, sse etc) e número-pessoais (-s, -mos, -m etc) . Finalmente, quanto à natureza sintática, verbo é a palavra que concorda com os pronomes pessoais eu, tu, ele, nós, vós e eles.

Caberia observar a precariedade do critério semântico, acima ventilado. Assim, por exemplo, em “sua participação ontem, hoje ou amanhã” tem-se uma ação situada no tempo e, nem por isso, “participação” identifica-se como verbo.

Macambira (1982), citando famoso fragmento de Iracema, menciona que “é difícil acreditar que o verbo não exprima outras coisas como por exemplo qualidade, no caso do verbo azular: ‘Além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema’.”

Cabe lembrar que as formas nominais (infinitivo não flexionado, gerúndio e particípio) não recebem desinências indicativas de número e pessoa, mas se identificam como verbos pelos sufixos de natureza verbo-nominal (-r, -ndo e -do).

Como os verbos dispõem de um sistema flexional exclusivo, parece não haver dúvida de que esse critério, de natureza formal, é o de maior relevância na identificação dessa classe de palavra.

O linguista Bloomfield, citado por Macambira (1982) menciona que “a gramática escolar nos ensina que substantivo é a palavra que serve para dar nome a pessoa, lugar ou cousa. Esta definição pressupõe mais saber filosófico e científico do que a raça humana pode assimilar e, além disto, que as classes existentes em uma língua concordam com as classificações que seriam feitas por um filósofo ou cientista. Fogo, por exemplo, é uma cousa? Por cerca de um século, os físicos acreditaram que fosse uma ação ou um processo e não, propriamente, uma cousa. Nossa língua emprega o adjetivo hot (quente), o substantivo heat (calor) e o verbo to heat (aquecer), para designar o que os físicos acreditam ser o movimento de moléculas em um corpo.”

Ao analisar a possibilidade de que ‘fogo’ seja processo, infere-se que Bloomfield esteja sugerindo que essa palavra possa ser interpretada como verbo. E realmente poderá, se for levada em conta a ótica puramente semântica. Trabalhando-se, contudo, com uma base de interpretação mórfica, a distorção se esvai, pois serão estabelecidas oposições formais do tipo gênero/número X pessoa/número entre os substantivos e os verbos. Também o critério sintático eliminará qualquer possibilidade de identificação da palavra como verbo, pois, evidentemente, não é possível a concordância com um pronome pessoal.

Em síntese, uma conceituação que abarque as características semântica, mórfica e sintática da classe dos verbos redundará em resultados mais coerentes.