O gerúndio e o gerundismo
O GERÚNDIO E O GERUNDISMO
No dia 09-03-05, a TV Globo, no seu programa “Bom dia, Brasil”, fez uma reportagem sobre o uso do gerúndio, em frases como “Vou estar trabalhando”. O entrevistado concluiu, inadequadamente, que se trata de um decalque da sintaxe inglesa. Ele não usou o termo “decalque”, mas deu a entender que se tratava de um.
Ora, tanto em inglês quanto em português, a forma dita “progressiva” indica o prolongamento da ação verbal, ou melhor, do processo verbal. Além do aspecto progressivo e, portanto, imperfectivo, o gerúndio indica também a simultaneidade de uma ação em relação a outra, como em “Ele viu o filme, comendo pipoca”.
Abstenho-me de comentar aqui o gerúndio usado como adjetivo (como em “Um livro contendo figuras”) ou como substantivo (em lugar do infinitivo, como em “A melhor maneira de achar uma vaga no centro é comprando um carro estacionado”, ou como em “Ouvi você falando de mim”), mas entendo que o gerúndio deva ter função basicamente adverbial, por oposição ao particípio (que deve ter basicamente função adjetiva) e ao infinitivo (que deve ter basicamente função substantiva).
É importante distinguir o gerúndio do gerundivo. O gerúndio é forma nominal de verbo e invariável. Mas o gerundivo é apenas nome deverbal, isto é, oriundo de verbo, e varia em gênero e número. O gerundivo latino tinha um sentido passivo. Literalmente, “o doutorando”, por exemplo, significa “o que vai ser doutorado”. Esse significado passivo não é mais observado pelo falante. Nomes como bacharelando, doutorando, professorando, diplomando, etc. são formas de gerundivo, oriundas dos verbos bacharelar, doutorar, professorar, diplomar, etc. Há gramáticos radicais que recusam legitimidade ao nome “vestibulando”, porque “vestibular” não é verbo, mas o uso consagrou a forma, agora definitivamente incorporada ao léxico da língua.
Quando um falante diz “Vou estar estudando”, não há o que censurar ou objetar, se o processo de estudar se prolonga no futuro. Isto é: quando digo “Não me telefone entre as três e as sete horas, porque nesse período vou estar estudando”, estou querendo dizer que o meu tempo de estudo vai durar quatro horas (das 3h às 7h). É claro que, quando digo “Vou estar enviando um e-mail”, por exemplo, o meu erro está em indicar o prolongamento de uma ação que, na prática, é pontual, é rápida ou não se prolonga no tempo. Em outras palavras, se o falante disser “Vou estar ouvindo”, sem a intenção de indicar a imperfectividade ou a progressividade do processo, seu erro será de natureza semântica e não de natureza sintática.
O abuso do gerúndio na fala popular pode estar caracterizando (o gerúndio aí é adequado) um problema de informação, e não um problema gramatical, isto é, não existe erro gramatical (nem imitação da sintaxe inglesa, como veremos à frente) no abuso do gerúndio na fala popular, embora seja recomendável que o falante atente para a adequação do que diz com o sentido do que quer dizer.
O professor René Étiemble, durante a década de 50, no século passado, tentou “higienizar” as letras francesas, numa luta que culminou com a publicação do livro Parlez-vous franglais?, em 1964. O “moralista” da língua fez escola: posteriormente, na França, promulgou-se uma lei que proíbe expressões estrangeiras em placas e letreiros públicos, nas transmissões radiofônicas e televisivas, na publicidade e nas redações oficiais. Xenofobia inconseqüente, porque o que caracteriza uma língua não é o léxico, mas a gramática. Se um dicionário fizesse a língua, o romeno seria eslavo, e o inglês faria parte do grupo das neolatinas. Se a influência inglesa no francês produzisse um artigo novo, um novo plural ou uma conjugação verbal diferente, então haveria motivos para preocupações. A ausência de artigo partitivo na propaganda francesa de Coca-cola (“Buvez Coca-cola”) assustou inutilmente os puristas: um caso isolado não mudou nem poderia mudar a sintaxe francesa, e o povo francês mantém intacto o emprego do partitivo, apesar da propaganda.
A tentativa de legislar sobre língua é bem antiga e sempre fracassou. Em Portugal, segundo Lindley Cintra (Sobre “formas de tratamento” na língua portuguesa), em 1597, Felipe II estabeleceu as formas de tratamento “para sossego de meus vassalloz”. Em 1739, D. João V fez o mesmo. Na Itália, em 1940, Mussolini tenta expulsar os estrangeirismos, para “purificar a língua”. No Brasil, em 1974, o general Euclides Quandt de Oliveira, ministro das Comunicações do general Geisel, tentou impor a norma culta, até mesmo nos diálogos das novelas, e banir o dialeto caipira das revistas em quadrinhos (Chico Bento, o personagem de Maurício de Sousa, foi ameaçado de morte, mas, estranhamente, o caipira Urtigão, das histórias Disney, foi poupado). Felizmente, o ministro desistiu e não levou avante o seu intento.
Há alguns anos, o deputado comunista Aldo Rebelo tentou impedir por lei, com ameaça de multa aos reincidentes, os que usassem nomes estrangeiros em dizeres públicos.
No dia 03-10-07, os jornais noticiaram o “fim do gerúndio”, por conta de uma lei absurda promulgada pelo governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ato que lembra a anedota de Valéry segundo a qual o marido, ao flagrar a infidelidade da esposa no sofá da sala, “resolveu” o problema removendo o sofá. Em lugar de ensinar os funcionários a usar o gerúndio, resolve-se o problema banindo-o da língua, como se a língua tivesse um só dono, coisa que, aliás, o Governo (leia-se: “Senado inoperante”) deve pensar, ao assinar um acordo de mudança ortográfica sem sentido, nascida para unificar a ortografia dos países de língua portuguesa. Mas dos oito países lusófonos, apenas três aceitaram essa reforma absurda.
Oxalá falantes ilustres tenham o bom senso de entender que a nossa língua portuguesa não tem um único dono. Nossa língua portuguesa é a língua de todos nós, mesmo que alguma autoridade não concorde com o nosso jeito de usá-la...
Uma frase adequada como “Se eu disser alguma coisa, você vai ficar imaginando coisas ruins a meu respeito” teria originado o abuso, e o gerúndio passou a ser usado, sem indicar ação prolongada como em “vou estar passando a ligação”, por exemplo. O abuso da terminação –ndo originou o neologismo “endorréia”, com que Rodrigues Lapa, no seu livro Estilística da Língua Portuguesa, batizou essa mania, como em: “Quando o prof. Armando era formando, estando esperando o irmão Fernando, desmaiou na frente de um educando.” A revista Istoé nº 1980, ano 30, de 10-10-07, na p. 48, estampa o artigo “Demiti o gerúndio”, assinado por José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal. Em seu artigo, o governador argumenta que demitir o gerúndio era uma necessidade, porque os funcionários públicos recorriam a ele “para justificar a própria ineficiência”. Para ele, ditos como “estamos preparando” ou “estamos providenciando” (exemplos citados por ele como condenáveis, mas exemplos legítimos do uso do gerúndio que nada têm a ver com o gerundismo) caracterizariam “um crime contra a população” por representar uma “progressão indefinida”.
Além do raciocínio indutivo que faz tabula rasa de todos os funcionários, considerados proteladores e ineficientes, José Roberto Arruda condena o gerúndio porque, para ele, o abuso do gerúndio é que seria responsável pelo emperramento da máquina administrativa. O gerúndio é que seria responsável pela burocracia, “enquanto doentes padecem nas filas dos hospitais”. Vale dizer: eliminando-se o gerúndio, os doentes terão atendimento, os funcionários exercerão suas funções com zelo, dedicação e eficiência. O gerundismo — como ele diz textualmente — é um crime contra a população.
Diz o governador que essa foi a maneira bem-humorada que encontrou para expressar sua impaciência com os atrasos no cumprimento das decisões. Segundo ele, o “decreto tem, quando menos, o mérito de abrir o debate sobre o tema. Além disso, mostra que o brasileiro mantém seu senso de humor.” Eliminar o gerúndio do serviço público não foi um modo “bem-humorado” de evitar atrasos, nem sei se o senso de humor de um brasileiro reside na supressão do gerúndio ou se algum decreto que elimine uma forma nominal de verbos promova algum debate sadio. Na verdade, o governador partiu de um grande equívoco.
Não é o gerúndio que provoca o adiamento de um processo, a procrastinação de um serviço público ou a falta de atendimento médico. Ao “abolir” o gerúndio (em lugar de aconselhar que se evite o gerundismo), o governador mostrou não apenas desconhecimento da língua que fala, mas também confusão entre o mapa e seu território, entre o substantivo “boi” e o animal que leva esse nome, entre a palavra e o seu usuário. Na ótica simplista do sr. Arruda, eliminando-se o gerúndio, eliminam-se também a preguiça e a incompetência dos funcionários e burocratas da sua administração. Se a mesa está quebrada, basta eliminar a palavra “quebrado” do dicionário para que a mesa fique consertada; para que um motor de carro funcione sempre, basta eliminar a palavra “pane” dos dicionários. Para que um funcionário trabalhe, basta eliminar o gerúndio do seu vocabulário.
O sr. José Roberto Arruda descobriu a cura de todos os males!
Alguns estudiosos – como dissemos acima – atribuem o abuso do gerúndio à influência das traduções do inglês. Parece-me que se trata de uma hipótese equivocada. Senão vejamos.
Quando duas línguas estão em contato, ocorre pelo menos uma solução entre três possíveis: 1) ou as duas línguas se fundem numa só; 2) ou uma das línguas domina a outra, que desaparece; 3) ou as duas línguas coexistem, e as comunidades adotam uma língua franca (caso das muitas línguas e dialetos indianos, cujas comunidades adotaram o inglês como língua oficial de intercurso).
Na primeira solução, a fusão das duas línguas ocorre depois de um longo processo de miscigenação que passa por um período de bilinguismo (situação segundo a qual os falantes utilizam as duas línguas, privilegiando socialmente uma delas, antes da fixação da língua mista chamada crioulo). O bilinguismo se distingue do ambilinguismo. Naquele, uma língua é privilegiada, como o espanhol diante do guarani, no Paraguai; neste, as línguas têm o mesmo status, como o francês e o flamengo, na Bélgica; ou como o alemão, o francês, o rético e o italiano, na Suiça.
Na segunda solução, em que apenas uma das línguas permanece, se a língua do povo vencido é a que desaparece (caso do celtibero, diante do latim), a língua vencida, antes de desaparecer completamente, após um período de bilinguismo, deixa na língua dominadora algum vestígio a que se dá o nome de substrato; se a língua do povo vencedor é a que desaparece (caso do germânico diante do latim), temos a influência de superstrato (vestígio da língua desaparecida do povo vencedor na língua supérstite do povo vencido). Na terceira solução, em que uma língua coexiste com outra, ambas em contato, a influência exercida em ambas ou numa delas se chama influência de adstrato, que se faz sentir basicamente no vocabulário e não na sintaxe.
O adstrato inglês no português do Brasil se resume exclusivamente ao léxico, graças à tecnologia americana e à supremacia dos Estados Unidos, como superpotência bélica e financeira.
Se o gerundismo fosse influência das traduções do inglês, seria preciso que, primeiramente, as camadas menos privilegiadas tivessem acesso livre a essas traduções, o que não é o caso do Brasil, em que a grande maioria de falantes do basileto (dialeto da base da pirâmide social) não têm acesso a nenhum tipo de cultura estranha, aprendida pelo estudo ou adquirida pelo contato. Para que uma regra nova se estabeleça no acroleto (dialeto das classes culturalmente privilegiadas), é necessário que ela passe primeiro pelo basileto. Ora, o gerundismo ocorre apenas no mesoleto, já que os usuários do basileto não têm acesso às traduções inglesas, e o acroleto repudia o gerundismo, e seus falantes chegam a proibir por lei que ele se use pelos falantes do mesoleto.
O que originou o gerundismo foi apenas o abuso de seu emprego fora dos padrões normativos de respeito ao aspecto verbal. Uma frase como “Vou estar (ficar) estudando hoje em casa”, perfeitamente legítima, porque designativa de um processo (a ação se prolonga no tempo), é que teria originado outra como “Vou estar passando a ligação agora”, em que, apesar da estrutura frasal idêntica, sem vinculação com o inglês, o aspecto pontual desautoriza o emprego do gerúndio. Não há, portanto, nenhuma influência do inglês ou de traduções do inglês no gerundismo, mas apenas o desrespeito exclusivamente mesoletal ao aspecto progressivo do gerúndio.
Se o leitor estiver interessado em mais informações sobre o que aqui se disse a respeito do gerúndio, do gerundivo, dos aspectos verbais do gerúndio, dos vários estratos dialetais e das leis promulgadas sobre os usos da linguagem, aqui vai uma pequena bibliografia a respeito.
BICKERTON, Derek. Inherent variability and variable rules. Foundations of language. Dordrecht n.º 7, p. 457-492, 1971.
CAMPOS, Odette A. de Souza. O gerúndio no português. Rio de Janeiro: Presença – INL/MEC, 1980.
CINTRA, Luís F. L. Sobre “formas de tratamento” na língua portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1972.
LAPA, Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. 3.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. O aspecto verbal no português. Uberlândia: Gráfica da UFU, 1981.