Normalização Linguística: uma discussãozinha que se impõe

Vários são os teóricos que, há já algum tempo, vêm reflectindo sobre a questão da “norma”, onde se pode registar, quanto aos estudos já feitos, consensos e oposições.

Relativamente a isso, apraz-nos dizer que se trata de um tema bastante polémico e polissémico, a ver-se pelas diversidades conceptuais e ideológicas que se registam.

Para esta reflexão, apegámo-nos aos trabalhos feitos por Bagno (s.d.), Adriano (2014), Aléong (2001), Castilho (2002), Faraco (2002), Undolo (2014), Coelho (2014) e Rodrigues (2007).

Norma – o que é?

Segundo Bagno (s.d., s.p.), “no que diz respeito às questões linguísticas, o conceito de norma dá margem a muita discussão teórica”, e é então a partir disso que, abaixo, apresentaremos tais discussões.

Sobre “norma”, verificámos que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa atesta as seguintes acepções:

“4 Rubrica: linguística, gramática

conjunto dos preceitos estabelecidos na seleção do que deve ou não ser usado numa certa língua, levando em conta fatores linguísticos e não linguísticos, como tradição e valores socioculturais (prestígio, elegância, estética etc.)

5 Rubrica: linguística

tudo o que é de uso corrente numa língua relativamente estabilizada pelas instituições sociais”.

Com base no exposto acima, verificámos ainda que, quanto à Linguística, Houaiss nos apresenta duas acepções contrárias, onde a primeira diz respeito ao “preceito estabelecido” e, porém, a segunda diz respeito ao “uso corrente”.

A este respeito, Bagno (idem) interroga-se dizendo:

“Como é possível, num mesmo campo de investigação, usar um único termo para o que é “preceito estabelecido” e para o que é “uso corrente”?”

Na verdade, a primeira definição que o Houaiss traz do ponto de vista linguístico, a nosso ver, encontra-se muito distante daquilo que é o real objecto de estudo da Linguística: a língua falada. Com efeito, aquele sentido está mais próximo da língua à luz da gramática normativa, que a estuda de forma ideal, e não da Linguística, que a estuda de forma real.

Assim sendo, a norma abarca – cientificamente e numa visão totalmente oposta à da escola – tudo aquilo que esta e livros didácticos ditam como “certo” e “errado” porque, tal como a idealizada – a que é tida como sendo a forma “certa” –, a não idealizada – vista como “errada” – também obedece a um padrão tão lógico e igual ao do idealizado. O problema é que a primeira é imposta por um grupo social, que se julga superior ao outro, para que seja então a “ponte” que “deve” necessariamente unir todos os cidadãos, bem como o único meio que deve ser usado no contacto directo entre o Estado e o cidadão. Mas só que, por razões sociais, esta chega mais a “separar” do que “unir” propriamente os cidadãos.

Norma – entre o normal e o normativo

Ao falarmos sobre norma, devemos ter em atenção que a partir do nome feminino “norma” derivam os adjectivos “normal” e “normativo” (Cf. Bagno, s.d.; Adriano, 2014; Undolo, 2014; Castilho, 2002), e este é, deveras, um assunto que pouco ou nada se fala a respeito, senão mesmo ignorado.

Adriano (2014, p. 82) vem assegurar-nos que “O normal será, assim, o habitual, o costumeiro, o tradicional dentro de uma comunidade. O normativo, por seu turno, vai remeter para o sistema ideal de valores que, não raro, é imposto dentro de uma comunidade”.

De forma resumida e quanto ao que constatamos no Houaiss, Bagno (s.d., s.p.) clarifica aqueles dois derivados de norma nas seguintes palavras: “O normal é o que descreve a acepção 5 do dicionário, enquanto a acepção 4 se refere ao normativo”.

Nas palavras de Aléong (2001, p. 148), podemos definir o normativo como sendo um “ideal definido por juízos de valor e pela presença de um elemento de reflexão consciente da parte das pessoas concernidas” e o normal como sendo “o reflexo real dos comportamentos observados”.

Para o caso de Angola, e citando aqui Undolo (2014, p. 57), “o normal corresponderá ao que designamos por PA [Português Angolano]; e normativo, ao que designamos por PE [Português Europeu] [...]”. Esta posição é também assumida por Adriano (2014).

Nesta vertente, deveríamos todos estar cientes de que o português falado em Angola – Português Angolano, Português de Angola, Variedade Angolana do Português, como queiram – possui uma norma, bem como uma gramática, mas só que essas não são “objectivas” e muito menos “externalizadas”, mas sim “subjectivas” e “internalizadas”, porque são inatas ao falante angolano de português, bem como também são aspectos unicamente verificados nos hábitos linguísticos – oral e escrito – do povo Angolano.

Dito de outro modo, é uma norma psicológica e que, por mais que a procuremos nos mercados, jamais a vamos encontrar, porque está dentro de mim e de si, é diferente da que aprendemos na escola como sendo a “possuidora” da “única” forma de “falar” português. O que se precisa, quanto ao caso de Angola, é tirar do “mental” para o “concreto”, tal como os Brasileiros fizeram com o português local, e ser usado nas escolas, nos órgãos de comunicação social, enfim, sem necessariamente ser julgado como “errado”.

Dando sequência, o “normal” é tudo aquilo que se diz, é tudo que é de uso frequente, real e tem como base a gramática internalizada, ao passo que o “normativo” é tudo aquilo que deveria – ou deve – ser dito, que não é frequente, que não é real, senão mesmo ideal. Em outras palavras, é tudo aquilo que a escola diz ser a única forma “correcta” de se falar, ignorando e estigmatizando as demais. Esse derivado de norma tem os seus fundamentos na gramática externalizada, mais conhecida por “normativa”.

Em relação a isso, vale dizer que tudo o que se fala, e por mais que o seja feito por pessoas que não tiveram acesso à escola, cientificamente obedece a um padrão, a uma gramática, mas a escola, que deveria ser um local democrático e de inclusão sociocultural, promovendo e divulgando um saber cada vez mais plural e diversificado, pouco ou nada aborda a respeito.

Nesta perspectiva, Eugénio Coseriu apud Cunha e Cintra (1985) vai dizer que a norma não corresponde, como pensam vários gramáticos – e a própria escola em si –, ao que se deve dizer, mas sim ao que já se diz dentro de uma comunidade linguística.

Embora seja verdade, ao afirmar isso Eugénio ignora e coloca de lado o “normativo”, que é o que se deve dizer, que é aquilo que a escola nos “incute” como se fosse a “única” forma de falar “português”, uma vez que do nome “norma” temos, então, os dois adjectivos que acima fizemos referência.

Nesta concepção, podemos dizer que existem variadíssimas normas, onde, do ponto de vista científico, nenhuma chega a ser superior ou inferior à outra, senão mesmo todas lógicas, concorrentes e competitivas entre si, embora a didáctica da língua nos possa dizer o contrário, porque os fundamentos que esta apresenta como “didáctico” não têm, na maioria dos casos, um respaldo “científico”, uma vez que o que esta julga ser a “única” forma “certa” de falar é, e sempre será, o resultado de análises “pessoais”, muitas delas baseadas na língua literária de escritores renomados dos séculos já idos – muitos deles já não estão entre nós! –, o que acaba por se dissociar da língua que realmente falamos e escrevemos.

Como, desde os primórdios, a nossa sociedade sempre foi “elitista”, ou seja, houve sempre uma separação entre as classes sociais, surgem então algumas normas que visam demarcar essa distância e distinção sociais, no caso das normas culta e padrão, que são modelos verificados – às vezes – em pessoas letradas e pertencentes à elite académica, social e financeira de um país, porque são ferramentas linguísticas que nos são garantidas pela escola e que, tal como todos nós sabemos, não é qualquer um a que a esta tem acesso, senão mesmo alguém que tenha possivelmente algum “poder”.

Pequenos tipos de normas

Castilho (2002, p. 30) observa as seguintes:

1.“Norma objectiva – explícita ou padrão real é a linguagem efectivamente praticada pela classe social de prestígio – usada estrato que apresenta os maiores níveis de escolaridade, identificando-se como a classe culta. É um dialecto social que em si nada tem de melhor, mas que é dotado de prestígio por conta da importância do grupo social que o utiliza. O prestígio dessa norma decorre da importância da classe social a que corresponde e em momento algum a certo status de ser ‘melhor’ do que as outras”.

É esta, portanto, a norma ensinada pela escola e que está, geralmente, intimamente ligada à gramática normativa. Nesta perspectiva, e segundo Adriano (2014, p. 74), esta também “tem sido comummente definida como um padrão de uso escrito e falado adequado às situações formais de intercomunicação linguística. Nesta perspectiva, a norma associa-se às classes altas e instruídas, ou seja, é uma marca que distingue essas classes das outras classes pouco ou nada instruídas”.

No latus sensu da palavra, podemos enquadrar o conceito de norma apresentado por Castilho como sendo os usos e atitudes da classe social de prestígio, em que se observam as regras do bom uso. Nesse sentido, está atrelada à gramática, à norma-padrão e à língua da escola.

Dito de outro modo, estamos diante da norma que corresponde ao padrão de língua geralmente utilizado por pessoas de grandes prestígios sociais.

2.“Norma subjectiva – implícita ou padrão ideal é a atitude que o falante assume perante a norma objectiva. O que a comunidade linguística “espera que as pessoas façam ou digam em determinadas situações” (...), isto é, corresponde ao dialecto que as pessoas esperam que os outros falem em determinadas interacções”. (Castilho, idem)

Esta se refere à norma natural ao homem, geralmente inata a ele, que não surge por intermédio de uma imposição ou do que a sociedade julga como “certo” ou “errado”. É, pois, uma norma mental, que está relacionada à gramática internalizada. Esta não é ensinada pela escola, porque, mesmo sem fazer parte dela, qualquer cidadão a domina e sabe perfeitamente.

3.“Norma prescritiva – decorre da combinação da norma objectiva com a norma subjectiva. Corresponde aos usos mais adequados a cada situação, identificados com o ideal de perfeição linguística”. (Castilho, idem)

Esta resulta da junção das normas objectiva (normativo) e subjectiva (normal), passando assim a ser utilizada de acordo com o contexto.

Para Castilho (2002), esta norma é, em geral, difundida pelas escolas como sendo a representação única e exacta da língua. Corresponde, em grande medida, à norma da língua escrita, que é mais conservadora do que a norma da língua oral – esta, sim, mais inovadora.

Na nossa forma de ver, a questão da norma deveria ser mais discutida em sala de aula, uma vez que, inexactamente, a única visão – se calhar até a do senso comum – que se tem sobre ela é a de que é um conjunto de regras que “obrigatoriamente” devem ser seguidas, caso alguém queira falar “bem”.

Em se tratando da realidade angolana, onde parece haver uma ilha entre o que os estudantes falam (normal) e o que a escola julga que deveriam falar (normativo), pensamos que reflectindo mais sobre ela se chegaria a concluir que – quer a escola, quer os estudantes – ambos obedecem a um padrão, já que do nome “norma” derivam dois adjectivos – normal e normativo. O primeiro corresponde à língua portuguesa falada pelos Angolanos, ao passo que o segundo corresponde ao português europeu, que nos é oficial e padrão, como se estivéssemos ainda na época colonial.

No presente texto, vimos que a norma não corresponde simplesmente ao que se deve(ria) seguir ou dizer, mas sim ao que já se segue ou se diz. Olhando para a norma em duas perspectivas – a do normal e a do normativo –, pensamos que poucas serão as pessoas que se vão rir quando se depararem com alguém que eventualmente esteja a fazer o uso de uma norma diferente da politicamente eleita como padrão ou exemplar.

CaetanoCambambe
Enviado por CaetanoCambambe em 14/08/2021
Código do texto: T7320380
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