O Gênero neutro
Recentemente tem esquentado nas redes sociais uma discussão sobre a inclusão do gênero neutro na língua portuguesa. A origem dessa discussão parece ser um esforço de inclusão linguística de pessoas agênero. O uso dos pronomes adequados já tem se mostrado um empecilho na causa LGBTQI+ mesmo quando a língua já dispõe de nomes que identifiquem corretamente as pessoas, como no caso dos transgêneros, que frequentemente são referidos, seja por ignorância, por confusão, por preconceito ou por simples oposição à causa, nos gêneros com os quais não se identificam, com homens trans sendo referidos com pronomes femininos e mulheres trans com masculinos. Para pessoas agênero a inclusão linguística encontra um obstáculo a mais, e um obstáculo gigantesco: no português há apenas dois gêneros: masculino e feminino. Não há meios, na língua portuguesa, de se referir a uma pessoa que não a identifique nem como homem, nem como mulher. A solução óbvia a ser buscada pelos simpatizantes da causa LGBTQI+ é expandir o alcance da língua para que ela se torne mais abrangente e portanto possivelmente mais inclusiva.
Aconteceu de ser a causa LGBTQI+ que trouxe essa discussão acerca da língua portuguesa. No entanto, eu acredito que a discussão sobre os mecanismos de identificação dos gêneros numa língua, sempre foi relevante no mundo, independente de haver ou não uma causa LGBT que a impulsione. Naturalmente uma língua humana sempre disporá de palavras para homem e mulher, macho e fêmea, mas os mecanismos de identificação de gênero na língua podem fazer muita diferença em situações do cotidiano. Por exemplo, um italiano falante do abruzzese pode usar a palavra zije para se referir a um tio ou uma tia, mas terá que especificar o gênero da pessoa a que se refere se quiser se seu ouvinte o saiba, já que a palavra zije se aplica a homens e mulheres, enquanto no português a vogal temática (A ou O) já trará essa informação. Já um turco na mesma situação usará uma de duas palavras bem diferentes: teyze (tia) ou amca (tio)*.
No português, artigos definidos existentes (o, a, os, as) já identificam o gênero do que se referem. Mas não precisa ser assim e em é assim em qualquer língua. Existem línguas como o japonês e o mandarim em que simplesmente não se usa artigo nenhum. Já outras línguas, a exemplo das germânicas inglês e holandês, os artigos não apresentam gênero, de modo que os artigos "the" e "de" nessas línguas são usados tanto para coisas masculinas quanto femininas. Escrevi "coisas" e não "substantivos", porque substantivo seria uma palavra menos precisa falando de línguas em que gramaticalmente substantivos não têm gênero: se traduzirmos para o português os sintagmas "a tired man" (um homem cansado) e "a tired woman" (uma mulher cansada), veremos que apenas uma palavra muda em inglês, mas em português todas as três palavras mudaram porque artigo e adjetivo estão de acordo com o gênero do substantivo, enquanto no inglês ele não muda nada gramaticalmente. Por fim, artigos com gênero definido são bastante comuns em muitas línguas, mas nem sempre se limitam ao masculino e feminino. Ainda falando de línguas germânicas, o alemão possui três gêneros: masculino, feminino e neutro, todos com seus respectivos artigos (der, die e das, respectivamente), mas os gêneros não flexionam adjetivos: Por exemplo, Gitarre (Guitarra) é um substantivo feminino e Wagen (carro) é um substantivo masculino, de modo que se usam os artigos correspondentes die Gitarre e der Wagen, mas se acrescentamos o adjetivo rot (vermelho), ele não se altera nos dois substantivos: rot Gitarre (guitarra vermelha), rot Wagen (carro vermelho).
As línguas românicas, por fim, se mostram comparativamente mais complexas em relação a gênero, com a mudança de gênero observada tanto nos artigos quanto nas flexões adjetivas: em espanhol observa-se os artigos "el" e "la", em francês "le" e "la", em italiano "il" e "la" e no português "o" e "a". Em três das quatro línguas citadas (espanhol, português e italiano) as vogais temáticas O e A definem os gêneros masculino e feminino, respectivamente, enquanto no francês o acréscimo da vogal E num adjetivo ocorre quando se refere a um substantivo feminino, como se vê em homme joyeux (homem feliz) e femme joyeuse (mulher feliz). Apesar de nenhuma dessas línguas ter gênero neutro, o italiano, diferente do português e espanhol, não dá preferência ao gênero masculino no plural, tampouco ao feminino, mas usa o i como vogal temática. Em português, para nos referirmos a um grupo de advogados, todos homens, dizemos advogados, para um grupo de advogadas, todas mulheres, dizemos advogadas, e para um grupo que inclua advogados e advogadas, voltamos a dizer advogados, enquanto o italiano usa simplesmente a palavra avvocati para os três casos.
Todos esses exemplos foram dados para mostrar que os gêneros estão presentes em várias línguas e a gramática dos gêneros acontece de formas muito diversas nelas. É limitante, para não dizer prepotente, barrar toda sugestão de inovação linguística, julgando-as como ingênuas ou surreais ou ainda achar que o modo como o português trata os gêneros atualmente é perfeito e definitivo. Se o alemão tem artigo neutro, por que o português não pode ter? Se o italiano tem flexões de gênero inclusivas, que mal faria se o português também tivesse? Na minha visão isso apenas enriqueceria a língua e eu gostaria muito de ver como seria a comunicação em português se essas possibilidades fossem concretizadas.
Mas não se engane, o parágrafo acima tampouco é uma defesa do gênero neutro que vem se difundindo pelas redes sociais. Há centenas de estudos em linguística sobre a mudança da língua e diversas causas identificadas pelos linguistas para ela. As mudanças na língua ocorrem de várias formas. Podem acontecer ao longo de gerações pelo domínio incompleto da articulação das crianças; uma criança de três anos dificilmente conseguirá falar uma palavra como "estatisticamente", se tentar, é possível que saia algo parecido, próximo à palavra intentada, mas não exatamente igual e o modo ligeiramente diferenciado de falar, sendo levado à vida adulta, ao longo de gerações, muda a língua gradualmente. As mudanças também podem ocorrer pelo convívio de diferentes povos que possuem formas diferentes de articular a fala. Para os ostrogodos que viviam na Península Ibérica, a ideia de se juntar duas consoantes num som, como os romanos faziam com p e l para formar a palavra pluvia, era bem estranha, de modo que preferiram trocar esse som pelo som do X, e assim formou-se a palavra chuva. As causas são diversas, mas nenhuma delas envolve um grupo de pessoas, reunido por qualquer propósito que seja, sentado a uma mesa e decidindo como as pessoas deverão falar. A língua não muda pela vontade de nenhum indivíduo ou grupo. O processo de mudança da língua é fascinante, é o que torna a língua viva e, portanto, plural, com diferentes línguas no mundo exercendo um papel na identidade de vários povos e tribos. É um processo intrínseco à própria experiência humana e por isso mesmo ninguém pode controlá-lo.
Sou a favor de toda forma de inclusão e sou igualmente favorável à mudança da língua (que aliás é inevitável, independente do que eu ou qualquer outra pessoa apoie), que vejo como um enriquecimento dela e não como um exercício da ociosidade, mas faço uma advertência aos militantes LGBTQI+ que tentam forçar uma coisa em favor da outra. Ninguém tem o poder de mudar a língua, nem militantes LGBTQI+. Ela vai se mudar sozinha com o tempo e a maior parte de nós nem perceberá. A causa LGBTQI+ sempre foi e ainda é uma causa que encontrou muita oposição na sociedade. Os opositores da causa obviamente se opõem também à mudança linguística proposta, frequentemente a considerando um sinal inaptidão comunicacional e portanto de deficiência intelectual. Mas eles não são o único e nem o maior obstáculo à consolidação do gênero neutro no português. Mais do que isso, a forçação de um modo atípico de falar pode acabar sendo um tiro no pé da própria causa, dando mais um motivo para que as pessoas antipatizem com ela.
Alguém pode decidir um jeito padronizado de se falar e poderá tentar introduzir forçosamente esse modo de falar na sociedade, mas fracassará. Isso sequer precisa ser dito hipoteticamente, é algo que nós vemos acontecer no dia a dia, o tempo todo: todos aprendemos a norma padrão na escola, norma essa que não aceita uma expressão como "pega ela", mas que todos dizem e ouvem centenas de vezes por dia malgrado as lições de gramática aliadas aos fiscais da língua que adoram "corrigir" o português dos outros mesmo numa conversa casual. Se alguém acha que um dia o esforço pela valorização da norma padrão (que é válido, sim, mas isso é assunto para outro artigo) fará pessoas dizerem "pegue-a" ou "pegá-la" numa conversa de boteco, pode esperar sentado.
O mesmo se aplica ao gênero neutro. Nenhuma quantidade de tweets ou textões no facebook fará com que alguém naturalmente passe a dizer aos outros "como vai e sue filhe?" na reunião de família de domingo.
Com isso critiquei os dois lados do debate e essas críticas são o que tenho a acrescentar. Não venho propor solução a essa questão, porque isso iria contra o reconhecimento de que a língua, viva que é, muda por si só, não por sugestão nem por imposição de ninguém. Elogiei o plural agênero do italiano terminado em i, mas nunca sugeri que ele fosse incorporado à língua portuguesa, mesmo achando que encaixaria bem, porque essa não é uma decisão que cabe a qualquer pessoa.
A ineficácia da mudança linguística premeditada é muito bem observada nos próprios textos das redes sociais que se propõem a aplicá-la. Os próprios usuários do gênero neutro às vezes se confundem, não sabem como usá-lo. Pode-se encontrar no facebook frases como "e natureza é linde". Ora, natureza é um substantivo feminino naturalmente por terminar em a, assim como os terminados em o naturalmente são masculinos. Transformar em neutros substantivos que já têm gênero bem definido só torna as coisas mais confusas. Não seria mais eficaz usar o proposto artigo neutro e em palavras como lanchonete e telefone? Por que telefone é um substantivo masculino e lanchonete é feminino? Não há nenhum critério para definir isso, por isso um gênero neutro se aplicaria bem a essas palavras, mas ele não está sendo idealizado para um para uso amplo na língua. O motivo de nenhum proponente ter pensado em aplicar o gênero neutro a palavras que não terminam em O ou A é justamente por essa mudança estar atrelada a uma comunidade específica, que é a das pessoas agênero, o que, do ponto de vista linguístico, é uma tremenda bizarrice. Não existem gêneros exclusivos para pessoas. O gênero neutro, nas línguas em que existe, é normalmente usado em objetos ou substantivos abstratos e não para se referir a pessoas, uma vez que o conceito de pessoa agênero nem sempre está presente na sociedade em que aquela língua é usada**.
Outra limitação visível nas tentativas de uso do gênero neutro nos textos de redes sociais é a sua falta de aplicabilidade em situações que não foram premeditadas. Ao se deparar com uma palavra como "vilã", por exemplo, os pretensos usuários do gênero neutro travam, porque se veem num impasse, já que nenhuma regra por eles criada parece se aplicar a essa palavra. Travar numa frase por não saber como se flexiona uma palavra deveria ser algo reservado aos aprendizes de línguas estrangeiras, uma língua falada com naturalidade não deveria ter esse tipo de problema, o gênero neutro no português o encontra por ser artificial, o que muito compromete seu potencial de ser usado na linguagem corriqueira.
A própria escolha, não muito aceita para além dos proponentes, dos pronomes neutros em português exemplifica a sua artificialidade. No alemão, existe o o pronome neutro "es", contrastando com o "er" (ele) e o "sie" (ela), mas nem todas as línguas dispõem desse pronome. daí surge a necessidade de introduzi-lo. Em português propôs-se o uso do "elu", cuja artificialidade é evidente. O inglês encontrou uma solução sem ter que recorrer a inovações lexicais artificiais e de baixo potencial de aceitação social: as pessoas agênero são referidas pelo pronome they, que é usado tanto para homens quanto para mulheres no plural e passou a ser aplicado a pessoas agênero mesmo no singular. Não poderíamos fazer o mesmo em português, uma vez o they pode ser traduzido tanto como "eles" quanto "elas", mas não é esse o ponto aqui. O que estou mostrando é que usar os nomes dos quais a língua já dispõe é uma tendência muito mais forte, para não dizer natural, do que inventar novos nomes, que soam estranhos e portanto desincentivam seu uso, que passa a ser inutilmente forçado pelos proponentes da mudança.
Eu gostaria muito, realmente gostaria muito, que o gênero neutro viesse à língua portuguesa e gostaria muito de ver como ela ficaria. Isso é mais do que uma vontade, é uma expectativa: eu acredito que ele virá, mas não creio que viverei para ver, pois a mudança na língua é gradual e uma mudança radical como essa não aconteceria em pouco tempo. Mas creio que virá, e essa expectativa vem do simples fato que a inclusão social (e não linguística) de diversas pessoas, incluindo pessoas agênero, é atualmente uma realidade e essa inclusão fará com que a natural e inevitável mudança linguística leve essas pessoas em consideração. Existem até precedentes para essa conjectura: alguns segmentos da comunidade LGBTQI+ já expressam características linguísticas próprias, como o dialeto chamado de pajubá, que se diferencia pelo seu léxico. O pajubá por décadas tem sido usado por gays e travestis nas grandes cidades do Brasil sem que ninguém precisasse se juntar numa mesa redonda para definir suas regras. O pajubá é naturalmente usado por essas pessoas porque elas tem afinidade com esse modo de falar, não porque premeditadamente inventaram um dialeto próprio. O pajubá não está mais completamente limitado ao uso por gays e travestis, já que expressões advindas dele como "mona" e "tô bege" são usadas por muitas pessoas fora da comunidade. Até arrisco dizer que o uso do artigo E se consolidará, porque sua fonética, entre as vogais usadas no português, é a que mais dista das vogais A e O, já usadas como artigos. Mas isso é apenas uma conjectura, não é uma sugestão, muito menos uma imposição.
O gênero neutro existe em várias línguas, as línguas se articulam de formas muito diferentes quando lidam com gêneros das coisas e a língua está em constante, natural e inevitável mudança. Esses três fatos, aliados à inclusão social de pessoas agênero, quase com certeza farão o gênero neutro no português ser uma realidade no futuro, mas como e quando isso acontecerá, cabe apenas à língua decidir, não a nenhum grupo ideológico, cuja militância não tem o poder de definir a velocidade e muito menos os rumos da mudança linguística.
*Na realidade existem quatro palavras na língua turca que em abruzzese se traduziriam só como "zije": amca, dayi, hala e teyze. Além da distinção entre gênero, o idioma turco também distingue tios paternos e maternos. Amca significa tio paterno e teyze significa tia materna.
**Isso não quer dizer que o conceito de pessoa agênero seja recente. Talvez seja em nossa sociedade ocidental, para a qual o conceito foi trazido pela evolução dos estudos de gênero e do debate sobre inclusão LGBTQI+. Mas não faltam exemplos de povos de diferentes culturas do passado e do presente terem figuras que não eram identificadas nem como homens, nem como mulheres (exemplo: índios Cherokee da América do Norte), às vezes a agenereidade sendo até um requisito para a ocupação de certas posições sociais, além de não serem incomuns em diversas mitologias divindades que não são masculinas nem femininas.