A nossa Língua Portuguesa é Angolana!? .

O show do Team do Sonho da Produtora LS que se realizou em Lisboa no Campo pequeno, teve vários músicos e momentos, mas o que mais me chamou a atenção aconteceu quando o músico Rui Orlando subiu ao palco e " duetou " com a música portuguesa Bárbara Bandeira. Em uma das estrofes, os músicos supracitados cantavam vice e versa, ora o cantor e compusitor Rui Orlando( angolano), ora a doce voz da cantora portuguesa Bárbara Bandeira. O que me deixou mais embasbacado ,além da harmonia musical de ambos , foram as questões linguísticas, pois enquanto a música Bárbara Bandeira cantava " Leva-ME contigo, até ao infinito estou meio perdida , só tu que me completas", Rui Orlando, um dos músicos mais renomados da nova geração, lindamente, cantava " ME leva contigo até ao infinito estou meio perdido só tu que me completas. Este pormenor é interessante, porque demonstra, claramente, que a norma seguida em Portugal é, totalmente, diferente da que é usada , a menos a nível da oralidade, em Angola. A tendência de um angolano ,que não tem ou nunca teve contacto frequente com Portugal/português, é de usar a próclise mesmo quando não há palavras que atraem o pronome, enquanto que os portugueses apenas usam a forma proclítica quando há um atraente como ( advs. Não, Quando, Onde, frases interrogativas, optativas, que exprimem desejos etc.). Assim o mais comum para os portugueses é a forma enclítica ( pronome depois do verbo ) e outras formas como a próclise e a mesóclise entram no grupo das excepções, ou seja, são usadas em determinadas circunstancias, porém para nós os angolanos, o comum é a forma proclítica, tendo ou não palavras/ vocábulos atraentes( pronome antes do verbo) enquanto que a forma mesoclítica ( pronome no meio. Ex.: Falar-TE-ei) constitui uma excepção . No caso de Angola, a ênclise caminha-se rapidamente ao desuso (quase que não se usa, os poucos que a usam de forma natural ou já tiveram um contacto com o meio dialogante onde se fala a norma portuguesa do eixo Lisboa-Coímbra, ou então esmera-se muito com a tendência de algumas vezes usar a próclise mesmo quando não é exigencial).

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Eis chegado o momento de começarmos

a disparasitarmos-nos de alguns vícios gramaticais e iniciarmos a perceber o carácter mutável da língua sem preconceitos. A verdade é que a língua não é fixa ou estável, ou melhor, não se percebe o dado linguístico como uma realidade imutável que não sofre alterações ,ou como um dogma que é o que a Gramática Normativa dá-nos a entender. A língua que estudamos, equipara-se a um rio que tem os seus afluentes, isto é, a partir de um nascem vários outros rios, assim, não se pode considerar que o afluente é o mesmo que o rio principal ou o principal é o mesmo que o afluente, porque são rios diferentes,pois com a alteração do curso muda também a água, a flora e, consequentemente, pode mudar a fauna. A título de exemplo temos o Rio Kwanza ,que possui cerca de 960km, tem como seus afluentes o Rio Lucala, Mucoso, Lúbia, Luando e outros, porém não podemos afirmar categoricamente que o Kwanza é o Lúbia, ou o Lúbia é o Kwanza, ou que o Kwanza é o Lucala, Luando e o Mucoso ou ainda que estes são o Kwanza, já que apesar de serem afluentes cada um é um rio, daí serem chamados mesmo de rio. O mesmo sucede com a língua em particular a Portuguesa. A língua falada em Portugal passou a ter vários afluentes , desde Brasil, Angola, Moçambique, Timor, Macau e outros, porém não podemos asseverar que a língua que é falada em Portugal, uma vez que é aí onde há a índole do português, é a mesma que é falada em Angola ou noutros paises, porque assim como um rio que é afluente de outro pode mudar a sua fauna, flora ou a temperatura da água, o seu comportamento o mesmo acontece com a língua ,em particular o português. A verdade é que uma língua seja qual for o país que é falada possui sempre um sistema linguístico de uma determinada região - dialecto. Ou seja, ela mesmo no país onde é falada não é igual para todas as regiões; o português falado no Alentejo não é igual ao de Lisboa ou de Aveiro, ou ainda o de Coímbra ou Porto. Essa variação aprofunda-se ainda mais quando esta língua que era falada apenas por europeus e na Europa, atravessou oceanos para chegar em Angola/Brasil/Moçambique. O carácter dinâmico ou a mutabilidade linguística é uma realidade. Afinal, ela muda por enes razões, desde as geográficas, sociais até as temporais. A Língua Portuguesa quando chegou neste território adquiriu nova forma, uma estrutura diferente pelas seguintes razões:

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+ primeiro, passou a ser falada num outro território que possui as suas próprias disposições geográficas;

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+ segundo, seu próprio clima e tempo;

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+ terceiro, em que há línguas que são de uma família totalmente diferente do grupo de onde surge a Portuguesa;

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+ quarto, é falada por pessoas que possuem uma epstemologia totalmente diferente da Portuguesa.

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Certamente, além destas razões, existem outras várias, mas analisemos apenas estas. As duas primeiras razões querem fazer-nos perceber que a Língua Portuguesa quando atravessou o Atlântico e chegou em Angola, encontrou um relevo , clima diferente e outros aspectos geográficas que de alguma forma influenciaram-na a ser o que ela é. A forma que se fala, a carga das pronúncias das palavras é grandemente influenciado por este aspecto. Porque afinal sabemos que o tipo de relevo pode determinar a forma que respiramos e por sua vez esta determina a forma como falamos. Daí, ás vezes, sentirmos que os falantes de um determinado país falam mais rápidos ou mais lentos que os outros.

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Além do relevo diferente, encontrou também uma língua totalmente diferente a ela. Repare que a Portuguesa pertence ao grupo de línguas Novilatinas ou Románicas que por sua vez pertencem as Línguas Indo-europeias e as que ela encontrou pertencem ao grupo Nígero-congolesas ou precisamente bantu que constitui o grupo mais falado em África. As línguas indo-europeias possuem características diferentes das Nígero-congolesas a nível fonológico, sintático, morfológico e outros.

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• A nível fonológico existem várias diferenças. Primeiro, a Língua Portuguesa permite que a sílaba possa ser constituída, embora nem sempre, por uma Rima ( consoante inicial), Núcleo ( uma vogal) e uma coda ( consoante final), o que permite um sistema de sílabas fechadas, ou seja, a Língua Portuguesa permite sílabas fechadas. Ex.: fuNil, Réptil. Repare que as segundas sílabas das palavras exemplificadas terminam com um som consonântico oclusivo lateral o que as torna sílabas fechadas. Há nesta língua sons vocálicos abertos , semi-abertos e fechados. Já as encontradas, em particular a Umbundu, não permitem que uma sílaba seja terminada com uma coda( consoante final), sempre com um núcleo ( vogal), ou seja, nestas línguas, em Umbundu, não existem sílabas fechadas, pois são sempre abertas. Ex.: ondjO, esandjU, elavokO, ositU etc. Não existem vogais fechadas, estas são sempre abertas. Diferem-se da Portuguesa pelo facto de serem tonais, isto é, elas possuem níveis de Tons. Pode ser de dois tons, como ongolo ( joelho) e ongolo ( zebra) ou de três tons como kalunga ( mar), kalunga ( morte), kalunga ( Deus). Todas estas e mais características tornam a Língua Portuguesa falada em Angola diferente da de Portugal, ou porque é falada por pessoas que possuem o sistema fonológico destas línguas( nacionais), ou porque é falada por pessoas que são influenciadas grandemente por estas devido a relação de adestrato que estas línguas, em particular o Umbundu, possuem com a Portuguesa no território angolano. É, por isso, que o falante angolano não percebe muitas vezes a distinção entre sons abertos, semi-abertos e fechados no plano da oralidade, a sua tedência é de abrir sempre. Repare: a palavra Acordo quando o " o" da penúltima sílaba é pronunciado como aberto é a forma do verbo acordar, porém quando fechado é um substantivo abstrato como em " 4 de Abril a data do acordo de paz". Outra norma que parece não vincar muito entre os falantes angolanos é aquela que nos diz que as palavras paroxítonas que têm na sua sílaba um " O" devem ser lidas no singular como fechado e no plural como aberto. Assim povo['pôvu] no singular e no plural povos ['povus]. Essa diferença para os angolanos não existe, porque para estes a palavra quer no singular a vogal da sua penúltima sílaba é aberta quer no plural. Repare: povo ['povu] ou povos ['povus].

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• No plano morfológico, há também diferenças, afinal, cada língua é uma língua. Cada funciona de forma diferente e neste caso por se tratar de línguas de famílias diferentes agrava a situação. Primeiro, no que tange as classes gramaticais a língua Umbundu em particular, não possui artigos, preposições, nem conjunções. Quanto os nomes e adjectivos, não flexiona em género apenas em número. A palavra ombwa ( cão) para formar o seu feminino ( cadela), precisaria concordar com a palavra mulher na mesma língua "ombwa yukaī "que literalmente significa cão de mulher. Tal como afirmamos acima, a variação em número existe, mas de uma forma que difere totalmente da do Português. No plano morfológico, podemos considerar o Umbundu, em particular, como uma língua de concordâncias, ou seja, ela vive de concordâncias ; tal é feita por prefixos que têm sido divididos em 18 classes. Repare: a minha casa é linda( ondjo yange cafina) no número contrário, isto é, no plural seria ( Olondjo vyange vyafina) . Esta concordância e variação prefixal choca com a Portuguesa que é feita por sufixos, ou seja, enquanto nas línguas bantu faz-se a concordância/ variação com prefixos em português o mesmo sucede, mas com sufixos que ela herda já do latim, aliás, as línguas indo-europeias todas possuem esta característica. O latim, por exemplo, flexiona através de declinações, no caso dos nomes, que se caracterizam através de desinências, no caso dos verbos a conjugação varia em tempo, modo, número, pessoa de acordo a desinência. Comecemos então com os nomes. Da primeira declinação fazem parte um bom número das palavras femininas. Ex.: Femina- ae.

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Singular Plural

Nominativo FeminA- FeminAE

Genitivo.......FeminAE-FeminARUM

Acusativo.... FeminAM-FeminAS

Dativo........... FeminAE- FeminiS

Ablativo.......... FeminA- FeminiS

Vocativo.......... FeminA- FeminAE

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Analisando o esquema acima, verificaremos que o Latim possui uma característica específica no que tange a variação dos substantivos. Primeiro, eles variam de acordo o caso ( N, G, AC, Dat, Abl. ou Vc) e o que determina se está no singular ou no plural são as desinências nominais de número que estão em letras maiúsculas. Tais desinências posicionam-se sempre depois do radical formando um tema. Repare: femin ( morfema lexical) + A/ae ( morfema preso). No que tange os verbos, estes seguem o mesmo processo de variação, porém, com desinência número-modo-temporais que se anexam ao radical geralmente. Repare: amO, amAS, amaT, amaMUS, amaTiS, amaNT. Assim, uma língua romanica da família das indo-europeias com a sua idiossincrasia colide com uma outra de outra família também e, por isso, possui as suas características próprias. Tal colisão verifica-se no plano da oralidade quando o falante angola fala português. Repare: " os professor são bandido"ou " As casa estão lá"; Neste fenómeno ve-se de forma clara que aquele que fala quando exerce este acto em português fá-lo ,muitas vezes, pensando/ utilizando o esquema da língua que ,no nosso território , o português mantém relação de adestrato. Nas frases citadas a uma comparação posta em actividade( na oralidade) com as línguas bantu. O português como afirmámos segue a estrutura de flexão do latim, isto é , através de sufixos, por isso, a pluralização é feita através do morfema preso " S" , porém, no português de Angola a tendência do falante é de transportar a estrutura de variação da língua bantu ao português. Assim, seria falacioso afirmar que na estrutura " As casaS são feia" não há formação do plural uma vez que neste caso trata-se simplesmente da influência bantuística ao Português. Aquele que fala acredita que pluralizou; isso significa que o Português falado em Angola não forma o plural como o Português de Portugal forma. E nem precisa seguir.

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Continuando, o quarto ponto refere-se a epstemologia, isto é, as pessoas que falam o português em Angola pensam de forma diferente; têm um pensar que se distancia da dos portugueses, até porque são povos de culturas diferentes. E, como tal, transportam o seu pensar na língua que a falam, o facto de transportarem aspectos ligados ao seu pensar na língua de que são utentes é um motivo de diferença, isto é, um Português pensa diferente do Angolano e vice e versa, e cada um leva o seu pensar na língua. Com a epstemologia queremos afirmar que a cultura, o modus vivendis, influencia grandemente na língua, aliás, estudar a língua é estudar a cultura, pois, o nosso objecto de estudo é um dos elementos essenciais da cultura, ou seja, é a língua uma das formas que o homem usa para manifestar a sua maneira de viver. Assim, estudar a língua que é falada por angolanos seja nacionais/ regionais ou o português é também estudar a cultura dos angolanos. Estudar a língua portuguesa falada no Brasil é estudar a cultura desse povo, ou Portugal ou mesmo Moçambique. A verdade é que a língua é de quem fala, se estudar a língua ultrapassa casos linguísticos, leva-nos também ao extra- linguístico,isto é, estudar a cultura de quem a fala, isto leva-nos a deduzir que a Língua Portuguesa não é apenas portuguesa, ela é também moçambicana, brasileira ou ANGOLANA. A nossa LÍNGUA Portuguesa é angolana, e não Portuguesa, ela é um outro afluente que acabou por ter características próprias em todos os níveis.