O ENSINO DA GRAMÁTICA

1---Gramática, palavra polissêmica (de muitos sentidos) - pode ser: 1-a descrição da língua, mas nem opressão nem liberdade, porque deflui do ‘corpus’, de uma técnica linguística histórica e de uma língua corrente; 2-conjunto de normas selecionadas de um uso fixado por tradição literária ou de textos com outra preocupação (língua da imprensa, da redação oficial etc.) - aí, é ensino sob a opressão do ‘tem que ser assim’... única possibilidade de uso, que era num tempo exclusivista, purista. Usuários, coitados! --- A partir de Manuel SAID ALI Ida (1861/1953), filólogo brasileiro (professor de MANUEL BANDEIRA no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro), esta visão estreita de gramática foi expurgada: primeiros estudos de linguística publicados em 1895. --- Em todos os idiomas, existe uma língua histórica, conjunto de sistemas que apresentam entre si coincidências e diferenças; assim, o falante conhece toda a língua histórica, mas usa sim uma variante sintópica (dialeto regional), sintática (dialeto social) e sinfásica (num estilo de língua). Esse mesmo falante é capaz de entender mais de um sistema linguístico, outros falantes diferentes dele... podendo perceber certa diacronia em vocábulos arcaicos, isto é, fora de uso (por exemplo, “botica” ou “água de cheiro”), seja ouvindo ou lendo. --- Cada modalidade da língua é funcional, segundo o linguista romeno EUGENIO COSERIU (1921/2002), tem a sua gramática, técnica linguística que o falante domina e usa na intercomunicação na comunidade onde está inserido. --- Palavras dele: “Constitui aspecto fundamental da linguagem o manifestar-se como língua. A criação, isto é, produção contínua de elementos novos e neste sentido é liberdade, é ao mesmo tempo historicidade e tradição, técnica histórica e tradição, vínculos com falantes passados e presentes. A língua não se impõe ao falante - o indivíduo ‘dispõe’ dela para manifestar sua liberdade de expressão”. --- Cada falante é um poliglota na sua própria língua, na medida em que decodifica outras modalidades linguísticas com as quais entra em contato, tanto a utilizada pelas pessoas culturalmente superiores ou inferiores a ele. --- Na escola “antiga”, língua era apenas a modalidade culta, literária ou não, refletida no código escrito ou na prática oral, intuitivamente repudiando o saber linguístico aprendido em casa, transmitido pelos pais. --- Não pode é haver um exagero na interpretação de liberdade, repudiando qualquer outra língua funcional que não seja a coloquial na comunicação cotidiana. ----- Relativa opressão negando-se ao falante a liberdade de escolher, para cada ocasião de expressão, a modalidade que melhor sirva à sua mensagem, isto é, a seu discurso. --- no fundo, a grande missão do professor de língua materna é transformar o aluno em poliglota, repito, na sua própria língua, escolhendo a língua funcional adequada a cada momento de criação e até mesmo no texto entremeando línguas funcionais, distinguindo-se a modalidade linguística do narrador e de seu(-s) personagem(-ns). --- Assim sendo, mais uma vez opressão ao impor a língua funcional da modalidade culta a todas as situações de uso da linguagem, como a língua familiar ou coloquial. --- Por outro lado, liberdade ao se entender que a língua histórica não é um sistema homogêneo e unitário, mas um diassistema (dia, através de) que abarca diversas modalidades distópicas (antítese da utopia, do ideal), diastráticas (variações sociais: nível culto, nível popular e língua padrão) e diafásicas (estilo de expressão ou situação da comunicação da língua) - cada comunidade linguística tem direito e realmente possui sua língua funcional. --- Ao ensinar o uso tripartidos dos pronomes este-esse-aquele, não dizer “prática da língua portuguesa” e sim de modalidade literária - uso por estímulo cultural ou conveniência estilística: liberdade de opção na escolha. Na modalidade literária, a distinção se faz em consonância com as 3 pessoas do discurso; na modalidade familiar ou coloquial, é entre os conceitos “perto/longe + pessoa do discurso”: primeira pessoa, perto de mim: “este aqui” / segunda pessoa, perto do outro: “esse aí” / terceira pessoa, ele, longe de nós: “aquele ali (ou acolá)”. --- As verdadeiras linguísticas que não apresentam oposição de valor, são apenas fatos de arquitetura da língua ou de estrutura externa de uma língua funcional. As variedades que apresentam oposição de valor, constituem fatos de estrutura ou estrutura interna --- A gramática escolar é vista como a descrição da própria língua em sua totalidade histórica, descrição do único caso possível da língua. Válido este ensino normativo, como o ensino de uma modalidade ‘adquirida’, que vem juntar-se a outra ‘transmitida’, que é a coloquial ou familiar. --- Para o linguista brasileiro JOAQUIM MATTOSO CÂMARA JUMIOR (1904/1970), a gramática normativa tem seu lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade e é errado misturar as duas disciplinas, fazer linguística sincrônica com preocupações normativas”. --- Finalmente, o ensino da gramática normativa resulta da possibilidade de que dispõe o falante de optar pela língua funcional que mais lhe convém para expressar-se, ou seja, a liberdade de escolha que oferece uma língua histórica em sua plenitude. --- É uma língua ‘adquirida’ cuja técnica histórica lhe cabe ser ‘ensinada’. --- Transformar essa língua funcional no modelo universal para todas as situações de expressão é um ato de opressão tanto quanto privilegiar a linguagem coloquial e familiar sobre todas as de,ais línguas funcionais do idioma à disposição do falante. --- Problema diferente é acompanhar a descrição de cada língua funcional - a que serve de base para a gramática normativa como a que reflete o conjunto de normas da modalidade familiar ou coloquial - e as alterações por que passa; necessidade constante de acompanhar em cada uma delas as normas depreendidas em determinado momento do da história da história da linguagem humana.

2---“Todos os homens têm direito a todas as conquistas da humanidade” - RUTH em coletiva profissão de fé. Sim, sendo que a linguagem da comunidade a que pertence é uma grande conquista, seja em comunidades primitivas (Ásia, África, Oceania) ou entre os povos altamente industrializados, países sub-desenvolvidos ou ex-colônias. Mas nem todo brasileiro tem igual acesso à língua nacional. As parcelas ditas “dominadas” da nossa população - digamos, nordestinos favelados nas metrópoles do Sudeste e do Sul, lavradores, bóias-frias, pivetes de rua, encarcerados, trabalhadores não-qualificados, empregadas domésticas etc. - têm acesso, na melhor das hipóteses, a “dialetos” do nosso idioma, realidade objetiva e irrelutável em grandes áreas territoriais, existindo uma única língua oficial para o país inteiro. Culta e conservadora é a classe dominante, com elementos retrógrados que jamais falaram esses “dialetos populares”, expressão linguística do... povo... Simplesmente, estes “não sabem falar corretamente, destruindo o português”. Outros mais eruditos falarão em dialetos e formularão planos para a educação linguística do povo, “salvação” da língua nacional, propondo redações (plural) no vestibular ou condenando os meios de comunicação em massa, principalmente a televisão, como elementos desagregadores da língua portuguesa. Finalmente, os mais liberais, sem confessar o elitismo convicto de serem donos da língua, falam de “dialetos sociais” em oposição à “língua culta”, que é a deles, ou simplesmente à “língua”, sem adjetivos - confirmando a tese de que em toda sociedade a ideologia dominante é a da classe dominante, o povo explorado “não sabe falar direito”. --- Mas há quem - os linguistas - use o termo dialeto cientificamente e sabem que há dominação e exploração e querem colocar-se ao lado do mais fraco, mas ajudam a complicar mais ainda a questão - com efeito, dizem que todas as manifestações linguísticas de todas as diferentes camadas da população (todos os “dialetos”, “variedades” ou “registros”), regionais ou sociais, têm o mesmo valor objetivo, no desempenho eficiente da comunicação. --- Assim, em passe de mágica, deixa de existirem dominados e explorados, todos iguais perante a língua. --- Também muitos democratas “revolucionários” afirmam com convicção populista que quem cria a riqueza da língua é o povo, dono da língua. --- E qual é essa língua? A literária, a científica e principalmente a gramática. Assim, “fora” com a gramatical instrumento da classe dominante para discriminar legitimamente os dominados. --- Este o quadro mais ou menos amplo das posições mais comuns a respeito da língua dos dominados. --- “E agora, José?” - diria CDA. --- Gramática, liberdade ou opressão? Nesse contexto, o que seria liberdade? E opressão? Liberdade de não ter acesso a esta conquista de todas as gerações que nos precederam, o tesouro lexical e gramatical da língua portuguesa? Não foram as classes dominantes que modificaram e transformaram o latim em português medieval, depois no moderno e no contemporâneo. --- Então, a luta do povo não é no sentido de ajudar a classe dominante a legitimar esse status. Há quem lute para ele não ter acesso à plenitude máxima da língua, pois isso representa o acesso à cultura de que está excluído, à ciência, à história, à comunicação com o passado e o presente da humanidade. Nesse sentido, é falso falar na gramática em termos de “opressão” - esta é impedir o povo de ter acesso à língua, codificada em uma gramática que objetivamente representa a teoria inconsciente que o falante tem da língua. --- Povo impedido de ter acesso à língua e cultura em geral, aí, sim, o ensino da gramática vai ser repressivo, imposto ao povo o esqueleto formal cuja carne e sangue ele não possui, o conteúdo cultural. --- Como encarar de que o povo tem direito, ao acesso a todas as conquistas da humanidade? E o problema do ensino do português às nossas populações indígenas? Tema demasiado complexo... Observações: 1-Será uma farsa toda e qualquer medida de política linguística, seja para as populações indígenas ou as grandes massas rurais ou urbanas brasileiras, que não esteja conectada com um enfoque global da sociedade, em todos os aspectos políticos-sociais-econômicos? Na melhor das hipóteses, a crença de resgatar culturalmente os indígenas, sem resgatar ao mesmo tempo /econômica, social e politicamente - toda a população brasileira. 2-Muitos defensores dos indígenas vêem o grande perigo de utilização da língua dominante , no caso o português, para a dominação e desestruturação da cultura deles. O ensino da língua nacional não tem que significar necessariamente destruição destas culturas e línguas, exemplo nos novíssimos /derrubada do colonialismo português em 1975/ países africanos de língua portuguesa, estados multinacionais, porém a língua nacional é o português, idioma do colonizador e explorador. Só que agora a língua é utilizada como instrumento potencial e real de integração de todas as nacionalidades, privilegiando a construção de uma sociedade justa e humana, integrada no contexto internacional, sem prejuízo das expressões culturais mais autênticas e profundas das diferentes comunidades que constituem esses Estados. --- Pergunta ideal seria: Ensino da gramática para a liberdade ou para a opressão? --- No ensino da gramática, questão intimamente ligada à cultura de todo o povo, também se contesta a luta da nação brasileira pela democracia, que se conquista dia a dia, momento a momento, em cada palavra ou frase.

FONTES:

Apostila não identificada, distribuída num seminário de língua portuguesa na UFRJ, início dos anos 70: 1-“O ensino da gramática: opressão? liberdade?” - Evanildo Bechara, Rio, UERJ / 2-O ensino da gramática - liberdade ou opressão?” - Ruth Maria Fonini Montserrat, Rio, UFRJ e CNPq.

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