Em defesa do Português Angolano! (por Caetano Cambambe)
Não é trabalho de linguista algum estar a fazer, quanto à língua, juízos axiológicos. O linguista, como qualquer um outro cientista, deve ser neutro axiologicamente. Ou seja, não deve dizer o que é o certo e o que é errado e, quem o contrário o faz, não é linguista: é uma pessoa falsa usando a Linguística e o qualificativo "linguista" para fins que não deve. Dito de outro modo, está a envergonhar a classe.
A sociedade e a política idealizam formas que por um lado são correctas e, para o outro, são ‘’erradas’’. Várias foram as vezes que os linguistas foram assediados para falar sobre o que a sociedade julga como ‘’correcto’’ e ’’errado’’. Há vários que se colocaram na posição de verdadeiros cientistas e, automaticamente, recusaram-se de/em fazer esses juízos axiológicos, pois ‘’certo e errado são conceitos pouco honestos que a sociedade usa para marcar os indivíduos e classes sociais pelos modos de falar e para revelar em que consideração os tem... Essa atitude da sociedade revela seus preconceitos, pois marca as diferenças linguísticas com marcas de prestígio ou estigma. (Cagliari, 1999, apud Da Silva, n.d., para. 1)
O linguista, como um cientista, seu trabalho é estudar, analisar, descrever, compreender e explicar os fenómenos linguísticos que giram à volta da língua, mas sem nunca dizer o que é errado ou certo, mostrando sempre, se possível até defender, que todas as formas de falar têm razões suficientes de existir e que nada na língua, como já fez menção o sociolinguista Marcos Bagno, é ‘’por acaso’’. Todavia, alguns que se dizem ser linguistas fazem o contrário: em vez de fazerem o que aqui dissemos, eles, por sua vez, partem para a prescrição, emitindo formas ditas "correctas" de se falar e julgar as que, segundo eles, são ‘’não correctas’’.
Fazer isso, na verdade, é como se desrespeitássemos um código deontológico inerente a uma profissão. Isso, porém, é colocar-se no lugar de um gramático, aquele que se preocupa com o que as pessoas devem falar, e não o que elas falam; aquele que dita regra, como um regularizador de trânsito, como as pessoas devem falar; no entanto, se não falarem tal como ele ditou, o gramático vê como "erro", um "atentado", enfim. Quando um pseudo-linguista faz isso, ele deve saber que deve retirar o atributo "linguista", pois não o é, e posicionar-se firmemente: ou gramático, ou linguista. Não deve misturar as coisas: ele sabe que, do ponto de vista da Linguística e suas áreas afins, não existem erros na língua. O que a gramática chama de erro, a ciência chama de "inadequado" ou "desvio". Ora, quando esse pseudo-linguista fala sobre certo e errado, está a desrespeitar a ciência e, concomitantemente, fere com os princípios linguísticos. Se falar sobre errado e correcto, ele dá relevo à gramática externa e trai a Linguística, apesar de se achar em/de "linguista": parece um parodoxo.
O linguista, diante do que a sociedade e a política dita como erro ou certo, ele deve tornar-se imparcial. Ou seja, não dá crédito a mais ou a menos a uma forma em detrimento de outra, deve tratar com o mesmo valor todas as variedades, apresentado as razões por que ambas, embora com o rótulo de correcto/errado, são lógicas e que merecem, sem se fazer juízos, ser usadas. Ao contrário do gramático, o linguista olha para isso em duas perspectivas, por exemplo: fala/escrita e formal/informal, eis a razão por que são chamados, lamentavelmente e também por não se reverem no que a gramática diz, por/de "liberais", ‘’defensores do português errado’’, ’’demagogos’’, ‘’ignorantes’’ e "tolerantes demais". Afinal, estudar a língua na perspectiva científica é ser isso? Valha-nos Saussure!
A forma dita errada, o linguista apresenta as razões por que, embora condenada pela gramática, sociedade e política, tem lógica e que, à semelhança da forma dita "certa", ela tem razões assaz para ser usada. Todavia, só que esse uso é condicionado e depende do contexto e de inúmeros factores: em situações informais e em escritas menos formais, a forma que sofre preconceito, que é estigmatizada e desprestigiada, ela pode ser usual, mas que em contexto formal e escrita formal devem ser evitadas, sob pretexto de que deve haver, para o caso, um pouquinho de conformidade e pureza gramatical para que, em contacto com um irmão de outro lado do continente, haja comunicação. Já o gramático, no entanto, ele fecha essa saída: ou é certo, ou é errado - o errado (tudo que se afasta da já cansada gramática tradicional), para ele não merece o uso, não importa o contexto, e o que digno de prestígio é a forma "certa", a que vale para todos os contextos. É como se existisse exactamente uma só forma de falar, o que jamais vai haver.
Face a isso, a União Tolerância Linguística está a ser acusada de emitir liberdades a mais aos falantes, criar "emburrecimento", de discredibilizar o que algumas pessoas fazem em prol do elitismo, conservadorismo, preservação, preconceito linguístico e ’defenderismo’ do dito ‘’português padrão europeu’’ em solo Angolano. Eles, no entanto, olham para a língua como um organismo morto, levando em desconsideração o que as pessoas vivam falam, não aceitando mudança nem variação: ainda pensam que a língua, desde o século XX, continua a mesma, do mesmo jeito, sem alteração na fala, bem como que, embora o português saísse do ponto A ao B, ele deve ser falado de acordo com o que se fala no ponto A, julgando que o ponto A e B têm as mesmas realidades.
Esse tipo de acusação só revela, pelo menos para nós, que, embora se conheça a realidade linguística angolana, as pessoas estão completamente preocupadas com o que não se fala (e pensamos que, se no século XVIII não falavam, então jamais vão falar) em vez do que se fala, embora o que não se fala ou se fala de forma diferente - que para alguns é erro, as pessoas não se identificam com ela. Como não se identificam a 100%, a UTL defende o uso daquilo que os Angolanos falam, aconselhando-os para que saibam ser "competentes comunicativos", sabendo separar o formal do informal, embora à luz da Norma Europeia sejam vistas como "erradas", e também do que pouco/não falam, isso é quanto à escrita.
Por haver, de acordo com Estrela et al (2014), uma discrepância entre o código da (i)fala e da (ii)escrita, onde o primeiro é mais descuidado e o segundo mais cuidado, é normal que na fala as pessoas utilizem algo que lhes é mais espontâneo, mais familiar, que se identificam com ele. Às vezes, o desejo de se falar "bem" é que faz com que muita gente, em função da Norma Padrão, "peque": é que quase todos nos esforçamos para falar de acordo com a Norma politizada, embora utilizássemos, na oralidade, uma outra norma, mas acabamos sempre, por vezes, em não se identificar com a variedade dita padrão, talvez por nada ter a ver connosco.
A gente defende, embora o poder político não reconheça, o Português Angolano, uma variante portuguesa falada em Angola, reflexo da realidade dos Angolanos e que, para alguns, não existe, embora exista mesmo. Como Angola não é, tal como Portugal, um país monolingue, as línguas africanas de Angola, aquelas que os portugueses oprimiam os Angolanos de as usar/em, acabam sempre em interferir-se, em quase todos os níveis linguísticos (sintáctico, pragmático, lexical, semântico, fonético, morfológico, pragmático), no uso da língua portuguesa, quer fala falada, quer escrita, em Angola, alterando a sua estrutura inicial e gramatical: fala-se um português carregado de bantuísmo e calão, moldado, como nos dizem Cavacas e Gomes (2005), ‘’de acordo com a realidade cultural e linguística de seus falantes’’, uma vez que se trata de um país multicultural e linguístico.
Por haver algumas interferências, a UTL defende esse português, apresentando, em função da história, factos sociolinguísticos e geográficos, o porquê por que (risos) esse português é falado assim: é a nossa identidade cultural e a nossa raiz que estão em jogo, já que esse dito português é também, nos dias de hoje, um património linguístico-cultural dos Angolanos.
Politicamente, e todos estamos concientes disso, a norma que se (des)segue e que se (de)ensina em Angola é a Europeia e, como escravos que sempre fomos de Portugal, devemos seguir o que a Norma Europeia diz. Essa Norma Europeia, em contexto angolano, denuncia exterioridade, seu não pertencimento a este lugar chamado Angola. Se vivemos em África e em Angola, então este atributo "Europeia" está, na fraca visão da União Tolerância Linguística, mal empregado. Isto é, em função do contexto espaço-geográfico, mudar-se-ia aquele atributo EUROPEU/EIA para ANGOLANO/A, e isso só será possível quando o Estado se conscientizar de que, apesar de pouco estudo, há um variedade nacional portuguesa em Angola que precisa de, após algumas levantações e estudos científicos (e não por "kimbandismo" ou por "adivinhação") bem dirigidos, uma Norma Externa/Gramática(atical) e Oficial. E, às vezes, somos questionados, no caso particular de Caetano, se o Português Angolano tem gramática e, ao contrário, por que você/s o defende/m? A resposta é muito simples: o ensino tradicional da Língua Portuguesa, em Angola, conscientiza os nossos estudantes de que só existe uma gramática, a Gramática Normativa, e que para além dela já não há nada. Por isso, todos devem falar segundo a Gramática Normativa e quem não fala de acordo com ela fala tudo "errado". Na prática, isso não corresponde à verdade, uma vez que, inclusive até o Professor que assim disse, na época em que não estava em contacto com a escola, ele usava a gramática interna, e é essa gramática que o Português Angolano possui: Gramática Internalizada ou Implícita, um aparelho linguístico-normativo que todos nós temos, desde a tenra idade, nos nossos cérebros. É essa gramática que permite a todos aqueles que, mesmo sem nunca passarem na escola, construam enunciados orais lógicos, correctos e perceptíveis a qualquer um.
Com efeito, os defensores dessa Norma em Angola (que aos poucos se vai perdendo a sua utilidade, uma vez que poucos a seguem), pelo simples facto de a Constituição e a Educação estiverem ao lado deles, esquecem-se de que Angola se chama Angola e que o português que cá se fala não é aquele que foi decretado politicamente e que as pessoas que cá vivem têm o gentílico "Angolano" e não "Português/es", daí a razão por que se verifica esse "atropelamento" das regras em vigor nessa norma que, se for criticamente reflectida e analisada de acordo com o que os Angolanos falam e escrevem, se demonstra mais estrangeira, estranha e descontextualizada no que à pragmática linguística angolana diz respeito, pois não foi prescrita e muito menos se baseia no uso oral dos Angolanos. É uma Norma que espelha a forma como os ditos escritores renomados, repetimos, escritores renomados e figuras públicas utilizam a língua. As regras, algumas, são extraídas na forma como os escritores escrevem e, quando comparada ao que se fala, denuncia uma ilha linguística em que o que (na prática) se fala e o que (na teoria) a Norma Padrão acha que se deve falar.
Atinente a isso, os defensores da Variedade Padrão, algo até que nem sequer eles usam, ainda ousam, sabendo que haja/há aspectos inerentes à gramática portuguesa que os Angolanos, por intermédio da gramática interna e do bantuísmo, usam em oposição à Variedade Europeia, eles tendem a continuar a distribuir pílulas do português "correcto", que quase a gente não usa na fala, corrigindo o que os Angolanos falam, zombando por vezes da fala de alguns, julgando até que só o que está na gramática e o que se fala em Portugal é a forma mais correcta, mais adequada, digna de prestígio, a que tem razão gramatical e lógica de serem usuais, e o que os Angolanos, com um português diferente do Europeu, falam uma língua corrompida, uma língua confusa, fruto da ignorância de alguns angolanos, mormente os ditos falantes cultos, resultado da falta de gramática, enfim. É tanto preconceito, linguístico e social, à volta disso.
O que acontece em Angola, na verdade, é algo que carece ainda de explicações: a Norma Culta Angolana é quase idêntica àquilo que a Norma Culta Portuguesa chama de "errado". Ou seja, embora com graus académicos elevadíssimos, alguns angolanos de escolaridades altas utilizam uma Norma quase idêntica àquela que qualquer angolano, culto como não, utiliza. Há um pouquinho do português inculto angolano dentro da Norma Culta. Dito de outro modo, algumas pessoas que estudaram utilizam o português daqueles que não estudaram, talvez por não se identificarem com a Variedade Padrão Europeia, a dita correcta, e por não serem, como em Angola se diz, ‘’amigos de dedo e unha’’.
É-nos difícil defender, a 100%, uma língua (estrangeira) que uma boa parte de nossos compatriotas não a usa(m) no seu todo - e que quando a usam, é de forma diferenciada- e condenar o que a maior parte fala, sob pretexto de a política afirmar que a NORMA que se (des)segue em Angola é a Europeia, o que nos dias hodiernos se verifica um contraste face a isso.
Portanto, primeiro o angolano (como pessoa e culturalmente) e, depois, e só mesmo depois, é que vem o restante. Vamos continuar a defender, embora nos chamem nomes, a língua que os Angolanos falam, estando ou não em conformidade com a norma (estrangeira) vigente em Angola, tendo ou não uma Gramática Normativa externa, até porque há línguas que não têm esse instrumento e um aparelho gráfico. Claro, para a Linguística a fala é mais importante que a escrita. Afinal, tudo na língua vale alguma coisa e que ninguém, exactamente ninguém, ’erra’ por prazer ou por gostar de "errar" simplesmente: falha-se por se querer acertar. Só que, embora muito esforço se faça para se falar "bem", alguns de nossos gramáticos não reconhecem isso, e acusam-nos sempre de "ignorantes".