O emprego do -e final em palavras que, normativamente, não há: uma característica do Português Africano (por Caetano Cambambe)

No mundo exite(m) várias línguas portuguesas. Assim sendo, a Brasileira e a Portuguesa, que são línguas normativamente autónomas, não são as únicas que existem. Por serem politica e normativamente estáveis, isso não implica dizer que se sejam superiores às outras línguas normativamente incertas ou não estáveis. São, contudo, umas das demais línguas portuguesas existentes ao redor do mundo. E essas línguas, quer na escrita, quer na oralidade, apresentam as suas características típicas.

Cada língua, no entanto, deve reflectir o estado social, regional, educativo, político, geográfico, profissional, etc., dos seus falantes, e é isso deveras que ocorre no português falado nas ex-colónias portuguesa em África: espelho nítido das suas culturas, relações e o modo como vivem.

As variantes africanas, quanto à pesquisa científica, são pequenas diante das variedades renomadas como a Brasileira e a Portuguesa por inúmeras razões que todos nós sabemos: uma delas é histórica - enquanto Brasil e Portugal cresciam, as outras colónias reconstituiam-se.

Em oposição à Norma Europeia Oficial presente nesses países, alguns falantes, quer cultos, quer não, por intermédio das suas realidades linguísticas tendem a introduzir, sempre nos seus diálogos, uma nova regra; regra essa que se afasta da Norma Oficial, em que as palavras são ditas com mais embelezamento, expressividade, mais arranjos prosódicos, novas caras semânticas, e por aí fora.

Não se sabe, até certo ponto, se nas línguas bantu acontece o mesmo, em que talvez exista a tendência de se acrescer um /i/, um /a/, um /e/, etc., no final de algumas palavras terminadas em r (se em Bantu não existe o /r/, como será possível?!). Isso, porém, acontece no português falado em Angola e em Moçambique, em que palavras que sofrem esse fenómeno fonético chegam a ser semelhantes a algumas palavras, de preferência verbos, pertencentes à língua latina e à língua espanhola. Ou seja, algumas alterações fazem com que as palavras deixam de ser inicialmente portuguesas, passando a ser, secundariamente, latinas ou espanholas. Esse fenómeno que visa introduzir um grafema/fonema no final de uma palavra cientificamente tem um nome, algo que preferimos não apronfudar nesse espaço.

Dentre nós, quiça até em abundância nas músicas, é comum ouvirmos palavras assim:

1) ....................................

‘’Hoje vamos (*)chuparE

Hoje eu vou me embriagarE

(...)’’ (Kamona King, in Caso birra, s.d)

2) ..................................

‘’(...)

MorE

Vamo só se (**)amarE

(...)‘’ (Ary Homem feat. Edmílson Laguetha, in Vamos só se amar, s.d)

................................

Note-se, nas palavras cujo E maiúsculo se faz presente, uma fala, já que são excertos musicais, um uso fonético diferente da fala e da ortografia oficiais. Esse uso, por sua vez, verifica-se mais na oralidade, uma vez que é espontânea, em relação à escrita, a rígida, a conservadora, a que exige todos os cuidados gramaticais do mundo, a que exige que se deve respeitar à ortografia e às regras explícitas da língua a fim de se perceber o que eventualmente, na escrita, a gente deseja transmitir.

Isso, como podemos todos imaginar, não acontece, unica e exclusivamente, no português falado em Angola, já que aqueles excertos são oriundos de músicas angolanas, pois em Moçambique, quanto ao que temos ouvido, acontece exactamente o mesmo, embora o uso não seja, tal como em Angola, generalizado.

Da música ‘’Não vai dar’’, de Filomena Maricoa, 2016, cantora (ou música, quer prefira ou não) moçambicana, prazerosamente extraímos o seguinte:

.......................................

‘’(...) Não tá fácil encararE

É tão prematuro aceitar que cá tu já não queres ficar comigo

E eu não vou aguentarE

Já estou habituada a viver pensando em alguém que já não quer ficar

Assim não tá darE

Viver sabendo que tens outro alguém

Não vou aguentarE

Te tirar da minha vida‘’

.................................

Como vimos, e isso não acontece em todos os verbos no infinitivo, há uma tendência de se acrescentar, nas variedades em abordagem, novos grafemas/sons em palavras que, quanto à ortografia oficial, não preservam tais grafemas/fonemas. Isso, a nosso ver, dá mais expressividade e realce sonoro àquelas palavras, principalmente na música, desviando-as da Norma Padrão Europeia e caracterizando-as com aquela maneira prosódica particular local, principalmente quando se trata de música: agrada a quase todos.

Segundo (***)Gomes e Cavacas (2005, pág. 104), os Angolanos e Moçambicanos tendem a formar, quanto à língua portuguesa falada nas suas regiões, palavras [que originalmente não levam -i, -a e -e no final] com terminações silábicas em -i. Porém, tem-se verificado, e com bastante frequência, acrescentando ao estudo por eles já feitos, a presença de e- em detrimento de -i, principalmente em infinitivos verbais, tal como acima se demonstra.

Trata-se, portanto, de algumas características morfossintácticas e prosódicas do(s) Português(eses) Angolano e Moçambicano, moldado(s) e reconstruído(s) pelas suas respectivas culturas locais, bem como condicionado(s), segundo aqueles autores (idem, pág. 103), pela realidade cultural e linguística dos falantes.

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(*) Chupar, no português padrão, equivale a beber, tomar, introduzir alguma bebida (de especial alcóolica).

(**) Ora, no excerto acima, é possível encontrarmos o verbo amar, pois não? Embora em português no infinitivo tal verbo não tenha desinência em E; porém, já no excerto musical, a gente encontra a presença de E. Assim, aquele verbo deixa de pertencer à nomenclatura verbal portuguesa, passando a fazer parte dos verbos latinos. Em outras palavras, o verbo amar, em latim, é ‘’amare’’. Como se denota acima, aquele músico, sem saber, já estava a falar latim em vez de português, por ter simplesmente empregado um E final no infinitivo daquele verbo.

Morfologicamente, em latim, o verbo ‘’amare’’ é constituído pela seguinte estrutura:

Am > radical; a > vogal temática; re > desinência verbal.

(***) GOMES, A. et CAVACAS, F. (2005) Escutar, Falar - Oralidade. Lisboa: Clássica Editora.

Não, nu, nó e num

A partícula adverbial negativa "não", nalgumas partes de Angola, parece que se está tornar variável na fala.

Por que variável?

A Norma Oficial decreta que se deve falar e escrever "não", e isso, segundo o que temos constatado, tem-se dado mais crédito, segundo o falar de alguns, à ortografia em detrimento da fala. Ou seja, escreve-se NÃO, todavia, nalguns contextos e por alguns falantes, fala-se uma outra coisa que chega a ser diferente da escrita.

Como não existe uma única norma para fala, pensamos ser normal que exista, no nosso país, diferentes formas de falar uma só palavra, embora a escrita seja a mesma, uma vez que, segundo Mia Couto (apud Cavacas e Gomes, 2005, pág. 102) ) e referindo-se ao português falado em Moçambique, ‘’o meu país [à semelhança de Angola ] é um território de muitas Nações. O idioma português é uma língua de uma dessas nações - um território cultural inventado por negros urbanizados [...]‘’.

Servindo-me das palavras dele, apraz-me dizer que a Língua Portuguesa falada em Angola reflecte cada cultura, cada educação e realidade etnolinguística dos utentes que a utilizam, demonstrando algumas interferências gramaticais dessas línguas bantu locais no português falado e escrito no nosso país, já que o português é, e isso é verdade, uma das demais línguas existentes e faladas em Angola, embora gozasse de prestígios por questões políticas.

Sendo-a, deve ser moldada e ensinada de acordo com a realidade social e etnolinguística dos falantes dessa terra chamada Angola, e não de acordo com indivíduos que não vivem num continente como África, Europeus, e num país como Angola, Portugal.

No Norte do país, aquele advérbio tem sido desnasalado, chegando a variar, na fala de alguns, em ‘’nu’’ e, às vezes, ‘’num‘’ - e com uma nova nasalisação.

Já no Sul do país, a realidade é outra, pois, e talvez uma grande influência do umbundismo, alguns falantes tendem a dizer ‘’nó’’, isto é fechando-o , ao contrário de "nu", que é aberto no Norte.

É muito comum, nalguns falantes do grupo etnolinguístico Ovimbundu, ouvirmos o seguinte:

- Nó sei;

- Nó quero.

Já nos do grupo Ambundu, o seguinte:

- Nu sei;

- Num quero.

Como referem Edite et al (2014, pág. 317):

‘’As questões da <correcta pronúncia colocam-se num plano diferente da correcta grafia>. O código da escrita difere do código da oralidade. Mais exigente o primeiro [o escrito], mais flexível o segundo [o oral] (...)‘’.

Já que existe uma diferença entre as regras da escrita e da fala, convém-nos dizer que, quanto à fala, devemos ser tolerantes, uma vez que não existe uma regra exacta para uma prosódia gramatical, tal como salientam aquelas autoras, até porque concorrem inúmeros factores de ordens biológicas, regionais e psicológicas nas nossas falas.

Portanto, podem existir inúmeras formas de falar/pronunciar, mas que, quanto à escrita, deve existir (unica e simplesmente) uma só forma, pelo simples facto de se querer preservar o código ortográfico oficial (válido mundialmente) e facilitar a transmissão de uma comunicação gráfica.

CaetanoCambambe
Enviado por CaetanoCambambe em 01/03/2017
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