Adequação Linguística (por Caetano Cambambe)

Todas as línguas do mundo dispõem-se de níveis. Níveis são diversos estilos linguísticos caracterizados por um padrão próprio de uso em relação à circunstância enunciativa. Como níveis, encontramos o cuidado (o que ninguém usa, salvo melhor ideia), o corrente (fácil de compreensão para todos), o familiar (utilizado em ambientes familiares), popular (o comum a todos), etc.

Em cada nível descrito, encontra-se um modo típico de utilizar a língua, em que o rigor normativo-padrão é mais exigido nalguns, e noutros não. Assim, o que é certo num, noutro nível pode ser errado: não importa se a sua mensagem foi construída de acordo com a norma. O que é errado num nível, noutro pode ser o mais correcto, o mais recomendável, etc. Isso, como se vê, remete-nos para uma questão de «adequação linguística».

Por exemplo, estando num ambiente informal e com pessoas iletradas (imaginemos que se tratasse de camponeses, i.e.), não se pode usar, referindo-se a um cidadão de escolaridade alta (por exemplo um Mestre ou um Doutor), aquele nível de língua que usa quando está diante de pessoas pertencentes ao mesmo status académico e num ambiente altamente formal: caso não se cumprir isso, considera-se errado o que falamos, pois foi-se um «incompetente comunicativo» pelo simples facto de não adequar o falar à circunstância comunicativa. O mesmo, pois, acontece o contrário. Portanto, torna-nos obrigatório saber adequar o que falamos à situação comunicativa.

Em ambiente familiar ou em contextos informais, é correcto dizer-se «você disseste», «embora que seja», «li amo muito», «eu venho aí», «vou na escola», «cartar água», «pedir com licença», «para mim fazer», «ouvir a falar», «ver a estudar», «as que horas», «venho aí», «fiticero», prefiro do que», «assisti o jogo» , enfim, e quase tudo aquilo que o senhor José Carlos de Almeida considera de «erro», «lixo» e «absurdo». O contexto informal não é assim tão exigente quanto à norma. Por não se exigir muito, aquelas construções são correctíssimas e usadíssimas.

Ora, estando num contexto formal em que o nível cuidado, padrão ou corrente é obrigatório, você terá de se despir daquelas construções, pois considerar-se-á «errado» ou, em termos mais modernos, «desvio» ou «inadequado». Logo, você terá de dizer: «eu vou aí», «vou à escola», «acarretar água», «pedir licença», «para eu fazer», «ouvir falar», «ver estudar», «a que horas», «vou aí», «feiticeiro», «prefiro a», «assistir ao jogo», etc.

Por que se deve dizer isso?

Deve dizer-se porque se está num contexto formal e, sendo assim, o uso de um nível linguístico que se adequa àquele contexto é, deveras, indispensável. Bem, a maior parte daquelas construções (e outras que JCA diz não existir, embora existissem mesmo) são mais usuais no nível familiar ou popular e em contextos informais. Sendo o caso, não há razão, referindo-se ao contexto informal, de corrigir porque, estando num contexto e usando um nível como aquele, aquelas construções não são erradas: a própria gramática reconhece e tem, indubitavelmente, noção disso – o erro na língua, como já dizia alguém, «é questão de contexto». Com efeito, todo tipo de correcção deve considerar-se como uma «incompetência linguística», ou seja, «desconhecimento da língua» por parte de quem o procede. Assim, só faz correcção em contextos informais e de construções «populares» e «regionais» quem desconhece a língua e os seus níveis: eles existem. E se existem, tal como os outros, eles merecem e devem ser usados – claro, adequando-os ao contexto. O erro, porém, surge quando a adequação do que falamos não é posto em prática e quando se esteja/está a confundir os contextos.

Esta, portanto, deve ser a atitude de um professor do século XXI: conscientizar os seus educandos sobre a existência de níveis ou, como preferem os Brasileiros, «regist[r]os linguísticos». O que na escola é correcto, fora dela pode ser errado, e o que fora dela é correcto, dentro dela pode ser errado. Tudo, até na escrita, é questão de contexto.

Falando ainda em «escrita», aquele modo «estranho» de se escrever nas redes sociais, do ponto de vista científico, tem um nome: “internetês”. Ele, por sua vez, tem a ver com aquela forma meio «estranha» em relação à norma padrão, em que o uso da língua escrita naquele contexto depende de quem escreve: é o caso das abreviaturas, algumas acentuações, supressões ou adições de grafemas, etc. Em contexto como aquele – referimo-nos aqui às redes sociais –, não é errado escrever daquela forma, até porque uma boa parte de seus usuários obedece(m) a uma norma; norma essa que permite, por vezes, a compreensão por parte dos seus utentes. Esse tipo de «norma gráfica», amigos, é diferente da «norma gráfica oficial» que todos nós conhecemos.

Fora desse contexto (das redes sociais), não se pode utilizar essa «nova variante gráfica da língua», o internetês. Por exemplo, numa folha de prova ou num tipo de documento formal, é considerado «erro». A norma ortográfica oficial, aquela que tem a sua fundamentação na gramática normativa, pode utilizar-se fora ou dentro das redes sociais. No caso do «internetês», ele não deve ser utilizado ou transportado para fora da internet (e suas redes afins): é «errado».

Em suma, em termos linguísticos, quer oral ou escrito, tudo vale alguma coisa: claro, há que se contextualizar! Escrever «vc» vale? Sim, claro que vale: nas redes sociais ou em mensagens de celulares; porém, não vale em textos formais: documentos (utilitários ou não), folhas de provas, cartas formais, etc.

Notaram? O que é certo num contexto, noutro pode não o ser, e assim vice-versa.

Dizer «eu li amo» vale? Claro que vale: em contexto informal e num nível bastante familiar; no entanto, num contexto e num nível formal de comunicação, o certo por se dizer é «eu amo-o» ou, caso seja possível e por uma questão estilística, «eu o amo».

Portanto, para se corrigir algo ou alguém, há que se ter e levar em conta todos os factores ora mencionados, e isso só acontece quando a pessoa conhece. Pessoas que desconhecem isso ou não-formadas na área tendem a corrigir à-toa sem noção de causa: para esse tipo de gente, a dita forma padrão deve valer e ser a única para todos os contextos, o que na verdade não pode e muito menos deve ser: afinal, ao fazer «amor», é necessário o uso da Norma Padrão? Não é exagerar tanto?!

CaetanoCambambe
Enviado por CaetanoCambambe em 01/03/2017
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