O ‘’entre‘’, no português falado em Angola, rege os oblíquos 'mim' e 'ti' ? (por Caetano Cambambe)
‘’É o que cada um dos cônjuges promete no altar, diante das entidades religiosas que simbolizam a concessão da bênção, perante Deus e todos os convidados, pais e padrinhos. No entanto, não é bem assim que as coisas têm acontecido.
Há duas semanas, quando fui chamado por um amigo para mediar um conflito que tinha com a mulher, ele parecia decidido a separar-se porque a esposa «queria saber tudo o que acontecia com [ele] no serviço, na escola e com a família [dele]».
Mas é o que seria normal, até porque foi o que ele prometeu à esposa e eu ouvi. Com os olhos vermelhos de lágrimas de muita alegria e porque não acreditava que tinha conseguido conquistar a mulher da sua vida, ele jurou: «A partir de hoje, entre tu e eu não haverá segredos, meu amor». E ela, como qualquer mulher apaixonada, retribuiu: «Faço das tuas as minhas palavras».
Eu tinha a impressão de que o casal tinha atingido o nível mais alto da felicidade. E tinha mesmo, pelo menos é o que parecia, até à semana antepassada quando tive de intervir. «Quando me casei, jurei fidelidade e não ser prisioneiro dela», desabafa o meu amigo que, até então, era o esposo mais feliz do universo.
«Se ele não tem nada que esconder, por que não posso mexer no telefone dele, ler as mensagens, à semelhança do que ele faz com o meu…?», pergunta a mulher indignada, aos soluços e já quase sem ar para pronunciar as palavras e exprimir o que lhe vinha de dentro.
Era pior do que uma batata quente o que eu tinha na mão. Mas como amigo, por mais dura que fosse a verdade, tinha de lhe mostrar que ele estava a cometer um erro. Por sorte tenho um amigo acessível e inteligente que não me deu dor de cabeça. Foi com muita facilidade que compreendeu que ‘entre’ (preposição) selecciona os objectos indirectos com preposição, ‘ti’ e ‘mim’, e não os pronomes de sujeito, no caso, ‘tu’ e ‘eu’.
Depois do meu conselho, voltou a prometer à esposa e dessa «será para valer»: «Entre ti e mim não haverá segredos»." ( Edno Pimentel, in Professor Ferrão, Jornal Nova Gazeta, 12 de Dezembro de 2013)
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A rigor, e disso todos nós sabemos, as formas oblíquas tónicas devem ser empregadas depois da preposição simples ENTRE. Isso recomenda a gramática normativa.
Essa regra, porém, até entre os ditos falantes cultos, escritores e falantes ‘’não-cultos’’, actualmente não é muito usual. As razões, até aqui, são várias, o que nos dá a perceber que se esteja a valorizar uma outra regra em relação àquela que acima dissemos. Em outras palavras, em certos escritos literários e em certas realizações linguísticas, tem-se usado uma norma diferente da habitual, aquela que vimos na Bíblia da Língua (é assim que António Afonso Borregana denomina a Gramática Tradicional). Nesse caso, faz-se sempre questão de utilizar aquela preposição antes de pronomes do caso nominativo.
A título de exemplo, temos alguns excertos extraídos em discursos literários:
1. ‘’Entre eu e tu,
Tão profundo é o contrato.
Que não pode haver disputa’’. (José Régio, ED, 91, apud C/C, 1985, pág. 216)
2. ‘’Entre eu e a minha mãe existe o mar’’. (Ribeiro Couto, PR, 365, idem)
Reparem que, meus amigos, nos anos 1950 a 1960 já se utilizava esse uso diferente da norma externa, o que a gramática e os seus apoiantes chamam de "erro". Embora a gramática as ache como erradas (por se diferenciarem do que ela prescreveu), os esforços que ela fez a fim de banir esse uso, como se nota, não foram assim tão fortes, pois, até hoje, tal uso ainda continua vivo e, como se não bastasse, está na fala de quase todo mundo.
Em solo angolano, na fala ocorre o contrário daquilo que, talvez, acontece em Portugal. Aliás, nós vivemos em Angola! E se isso ocorre, é bastante normal, pois é assaz difícil que haja uma única forma de falar português, razões já emitidas pela Linguística. No falar angolano o "entre" não rege os oblíquos MIM e TI concomitantemente, salvo algumas excepções. É mais utilizado, em oposição à gramática tradicional, diante dos pronomes do caso nominativo. É algo que se vai estendendo até aos outros discursos. Assim, fica bastante complicado considerar errado construções do tipo usadas por um bom número de falantes, cultos ou não, sobretudo quando já se regista no plano gráfico da língua. Precisamos de um olhar atento a isso, pois quando milhões de falantes optam por um uso diferenciado da norma, o problema não está nos falantes. Porém, está na regra antiga. É necessário que a tradição gramatical ande de mãos dadas com a língua, para que não tenhamos uma ilha linguística entre a língua utópica (idealizada pela gramática) e o que, efectivamente, é o realismo do pragmatismo linguístico.
É raro, em solo angolano, alguém dizer que ‘’entre mim e ti não há mais nada’’, porque, para além de ser uma construção estranha, no português falado em Angola aquela preposição não é meramente empregada diante de oblíquos como aqueles, salvo alguns casos. É mais frequente o ‘’entre tu e eu não há mais nada’’, em que ENTRE rege os pronomes rectos EU e TU, etc.