Minha filha de mulher versus meu filho de homem: uma breve explicação e análise linguística de um dos fenómenos mais recorrentes no português de Angola (por Caetano de Sousa João Cambambe)
A nomenclatura dos membros de família - em certas línguas africanas de Angola - não é a mesma com a do ocidente. Embora haja alguns traços por se tratar de uma comunidade de origem bantu, há aspectos próprios dos ambundu, como qualquer outra de origem bantu, nomeadamente tucokwe, ovimvundu, bakongo, ovahelelo, ovangangela, ovanyaneka, ovandongo, ovakwanyaneka, etc.
Em português, existe expressões para designar o masculino e o feminino dos nossos primogénitos .
Ex.: filhO (masculino) e filhA (feminino).
Em algumas línguas africanas de Angola - no caso de kimbundu- não existe tais expressões. O que existe, na verdade, são algumas equivalências. Em português, existe(m), por exemplo, certas expressões para saudar alguém durante os dois períodos, ou seja, três períodos (bom dia, tarde e noite). Em kimbundu, não existe tais saudações, tal como dissemos acima: há algumas equivalências.
Agora, voltando à questão acima, apraz-nos salientar o seguinte:
Para quem não conhece certos fenómenos linguísticos angolano; para quem é completamente limitado na gramática tradicional; para quem somente analisa a língua na vertente gramatical, as construções acima estão, do ponto de vista da 'BÍBLIA (a gramática normativa)', fora de sei lá o quê, ou seja, estão sem coerência. Sem se apegar aos capítulos e versículos prescritos tradicionalmente pela 'BÍBLIA (gramática)', pessoas do tipo acima não conseguem analisar, entender e explicar certos fenómenos, à semelhança do que acima se fez menção, esmiuçando os porquês desse tipo de construção. Na verdade, acabam por concluir, lamentavelmente, da seguinte forma:
a) Minha filha de mulher?... Erro! Minha filha.
b) Meu filho de homem?... Erro! Meu filho.
Homem e mulher? Por que razão, se filho se refere ao homem e filha à mulher?...
É, amigo(a), é assim que seria. Mas importa salientar aqui um "talvez"... É isso aí: um "talvez".
Ora bem, nas últimas edições (na conta pessoal do Caetano Cambambe, actualmente Netílson de Sousa Kambambe, no Facebook ), deveras que deixamos ficar qualquer coisa, do tipo: interferências das línguas bantu de Angola ao português falado em Angola. Mas, hoje, estamos cá para abrir um novo capítulo nessa história: afinal de conta, só são as línguas bantu de Angola que se têm interferido ao português falado em Angola? Claro que não, pois o português local também se tem interferido nas línguas bantu de Angola, particularmente kimbundu.
Face a isso, quanto à temática em abordagem, importa, desde já, repetirmos o que já dissemos mais acima: em kimbundu não existe dois termos para designar filho e filha. O que há, na verdade, é simplesmente um termo para designar filha e filho (mona) . Agora, se for para distinguir os sexos, utiliza-se, normativamente, WA DIYALA (para o masculino, que, em português, equivale a FILHO DE HOMEM e, por fim, em kimbundu, mona wa diyala) e WA MUHATU (para o feminino, que, em português, remete-nos para 'FILHA DE MULHER' e, para o kimbundu, mona wa muhatu).
O problema, por aqui, é que os nossos papás ambundu (e não só) - indivíduos pertencentes à etnia falante de kimbundu, em Angola - na hora de se expressar(em) em português, sua língua segunda, a fim de designar filhA e filhO (o que na sua língua materna não há), dizem, achando que em português e em kimbundu é tudo mesmo, o seguinte:
a) Meu "filho de homem", por favor, passa-me só aquele prato;
b) Minha "filha de mulher", tudo bem?
Meu filho de homem, no primeiro exemplo, equivale a "meu filhO"; minha filha de mulher, por sua vez, equivale a "minha filha". Como em kimbundu e nalgumas línguas bantu de Angola não existe isso. Os seus falantes, ao se referirem ao género, utilizam aquelas construções, presumindo que o equivale em kimbundu ou numa outra língua bantu de Angola chega a ser o mesmo em português. Portanto, eis a razão daquelas construções que, para língua portuguesa, parecem ser meio estranhas e cacófonas, mas que no português de Angola, tendo em conta o factor etnolinguístico, é muito recorrente.
"Para que se compreenda o português falado em Angola, é necessário que se conheça as línguas africanas de Angola"